Finger Lakes

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Eu não sabia como reagir a toda essa história que Bleir havia acabado de me contar. Meu coração se movia entre tristeza, ódio, mágoa e raiva de tudo que minha mãe passou. Eu queria vingar a vida dela, colocar a cabeça desse bendito rei em uma lança em frente ao seu palácio para todos verem sua derrota, já que, com a morte da feiticeira negra, ele já não estava tão protegido. Mas minha vontade era sentir essa feiticeira agonizar em minhas mãos.

— Nico! Nicolas! — chamou Bleir, interrompendo meus pensamentos que voavam longe. 
— Desculpe, Bleir, estava tentando entender o porquê de toda essa guerra entre bruxas, feiticeiras e realeza! — disse enquanto olhava pela janela, atentamente, à movimentação das pessoas que passavam na rua. 
— Nico, você precisa entender que você não pertence a este mundo dos mundanos. Eles nunca te aceitariam em sociedade; iriam te caçar e até te matar. Você não pode deixar que te vejam, Nicolas! — exclamou Bleir, se aproximando e colocando suas mãos sobre meus ombros.

Eu sei que minha mãe deu a vida por mim; para poder me dar a vida novamente, ela se sacrificou. Mas eu precisava de respostas; minha cabeça estava perdida. Eu precisava entender por que nasci assim, precisava saber sobre Xanadu e onde ficava.

Já vivíamos no século XX. Bleir sempre foi como mãe para mim, sempre me cuidando e não deixando nada de ruim me acontecer, sempre me protegendo dos mundanos. Morávamos em uma casa de dois pisos, rústica, construída em madeiras nobres e pintada de branco. Ao redor da casa havia um grande bosque que, durante a noite, era tomado por névoa. Ninguém nunca parou para saber quem morava na grande casa; as pessoas sempre ouviram dizer que ali morava uma velha que não gostava de intrusos. A casa ficava um pouco afastada de Finger Lakes, Nova York, conhecido mais como "lago dos dedos". A região era famosa pelos grandes lagos e pelo parque que a cercava, além dos pequenos vilarejo que havia no meio da extensa floresta.

Nunca pude sair de dentro da casa; Bleir nunca permitiu, por medo de que me avistassem. Já estava completando 634 anos, mas, pela minha aparência física, eu teria 24 anos, segundo a idade dos mundanos. Bleir dizia que, minha imortalidade é uma das consequências da minha reencarnação. Passava o dia todo me olhando no espelho, tentando entender por que eu tinha toda a magia da minha mãe e por que nasci com asas. O que me impedia de sair da casa? Sempre cortava as penugens para diminuir o tamanho; eram longas demais, talvez duas vezes o meu próprio tamanho. Elas eram lindas, pretas em um tom meio acinzentado, mas para que tudo isso se eu nunca pude voar? Apenas podia ficar observando pela janela que dava vista ao imenso lago e à floresta em volta, além dos pássaros voando.

Bleir já estava quase em seu final de vida, a última das guardiãs viva até hoje. Já não podia sair para compras na cidade, se cansava com muita facilidade. Em breve, eu estaria sozinho no mundo, sem saber o que fazer. Sempre fui totalmente dependente de Bleir; não posso ficar sem ela. Eu não quero perdê-la, a única que me faz sentir próximo da minha mãe, a única que me cuidou até hoje.

— Nicolas! — gritou Bleir de seu quarto, que se encontrava fraca demais para sair em busca de alimentos. 
— Mãe! Você está muito fraca para sair; a cidade é longe. Deixa eu ir, prometo não deixar ninguém me ver sem túnica! — afirmei. E, antes que ela falasse algo contra, fui me retirando do quarto. Nunca fui até a cidade; mal sabia como chegar, só sabia a direção que Bleir sempre ia. Me aprontei, vesti a longa túnica preta com capuz e, pela primeira vez em toda a minha existência, saí de dentro da casa. Logo senti a forte brisa gelada entrar em contato com meu rosto. Conseguia ouvir o vento cortando em meio às grandes árvores de copas; o barulho das folhas era um pouco assustador. Eu estava tendo turbilhões de sensações misturados com adrenalina e aquela imensa vontade de correr para dentro de casa, mas eu precisava ir pela Bleir! Eu poderia ir a cavalo, mas minhas asas ficariam à mostra. A pé, eu apenas parecia um jovem rapaz corcunda. Caminhei todo o tempo de cabeça baixa, sem ao menos olhar para o lado; eu estava receoso, não acreditava que, depois de centenas de anos, estava saindo em meio à civilização. No trajeto, passavam vários mundanos por mim em charretes, alguns em carros e outros em bicicletas. A estrada era repleta de árvores; os pássaros cantavam alegremente, e os raios de sol que adentravam entre as árvores deixavam a paisagem mais bela.

Após um tempo caminhando, cheguei até a cidade. Era tudo muito barulhento, um caos. Eu não sabia para onde ir; eram tantas ruas. Pessoas começaram a me reparar, me olhavam ali naquela esquina, sem saber para onde ir. Alguns até tiravam sarro, e isso começou a me deixar atordoado. Bleir havia dito que não seria fácil. Como eu me arrependia de ter vindo! Saí correndo pelas ruas sem saber aonde ir; só me lembrava de algo chamado Griwn, e lá eu encontraria tudo que precisasse. Já fazia muito tempo que eu havia saído de casa; Bleir já deveria estar preocupada comigo. Me apressei em encontrar logo o tal lugar.

— Ei, cuidado por onde anda! — escutei uma voz dizer, após eu ter esbarrado em alguém. 
— Me-me desculpe! — respondi, gaguejando e com certo receio. 
— Está tudo bem, só tenha mais cuidado; vai acabar sendo atropelado com toda essa pressa! — exclamou o jovem rapaz, que logo em seguida questionou: — Você está perdido? 
— Não! Quer dizer, estou. Eu nunca havia vindo à cidade, e é minha primeira vez — respondi, virando as costas e seguindo meu caminho. Eu sabia que não poderia manter contato com mundanos; isso nunca daria certo. 
— Calma! — gritou o rapaz, que logo em seguida segurou meu braço. — Eu posso te ajudar e acompanhar se quiser. Onde você quer ir? — questionou o garoto. 
— Preciso ir até o Griwn, mas não sei nem onde estou e muito menos como voltar para casa — indaguei, sem esboçar muita reação. 
— Primeiramente, prazer, me chamo Nick! — exclamou o rapaz, que logo em seguida estendeu sua mão em forma de cumprimento. 
— É, me chamo Nicolas Stengard — respondi e, logo em seguida, expliquei a ele o que eu precisava fazer. Nick me levou até Griwn, que era quase uma feirinha. Peguei tudo que precisava, desde alimentos a remédios para a Bleir. Contei a Nick onde eu morava; ele ficou espantado ao saber. Disse que sempre teve vontade de saber quem morava na grande casa branca em meio à floresta, mas sempre teve medo. Ele também contou que, há anos atrás, ouviu uma história que quem morava ali era uma velha bruxa que veio de centenas de anos passados, e a história não estava errada, apenas a parte da bruxa que não era verdade. Viemos todo o caminho conversando; pela primeira vez eu tive contato com um mundano e me senti bem com isso. Não senti medo ou algo do tipo; eu sentia que podia confiar em Nick. Em nenhum momento ele me questionou sobre minhas vestimentas, coisa que o povo da cidade olhava e se questionava. Até ouvi alguns dizendo: "De onde saiu esse ser estranho?" Nick me deixou perto de casa. Pedi a ele que não voltasse ali para evitar conflitos. Já estava noite, e ele teria que voltar sozinho até a cidade, mas não me importei muito, até porque eu não poderia de jeito nenhum deixar algum mundano se aproximar da casa. Estava uma noite fria lá fora, e quando cheguei, Bleir se encontrava sentada em uma cadeira de balanço feita de pinos, que, a cada movimento, rangia.

— Bleir, me desculpe, eu acabei me perdendo e não conseguia encontrar Griwn, mas o Nick — interrompi minha fala quando me dei conta que soltei, sem querer, o nome do jovem rapaz. 
— Quem é Nick? — questionou ela. — Nicolas, eu falei pra você não conversar com mundanos! E você me faz tudo ao contrário! Você não vai mais sair de dentro desta casa, está me ouvindo?! — exclamou ela, esbravejando e se levantando da cadeira, caminhando até a cesta de frutas que se encontrava em cima de uma pequena mesa de centro. Apanhou uma maçã e logo em seguida foi se deitar, sem ao menos me dar a chance de me explicar. Eu não fico chateado com Bleir; sei que ela faz isso para me proteger, mas eu sei que Nick é diferente dos outros mundanos, eu iria fazer o que Bleir havia dito: não sairia mais de casa e voltaria às mesmas condições; somente ela continuaria a sair. Subi para meu quarto, que ficava no sótão da casa. Me sentia bem ali; tinha bastante espaço para mim e podia alongar minhas longas asas inutilizáveis. Me deitei em minha cama e, quando dei por mim, estava me questionando novamente sobre minha mãe, Irina, o tal rei e sua feiticeira. Em meio a tantos pensamentos, acabei pegando no sono. Logo em seguida, me vi em uma densa floresta negra, coberta por névoa, e escutava uma voz chamar pelo meu nome, que ecoava pela floresta: "- Nicolas-las-las-las -" A voz se repetia várias vezes. Eu procurava de onde vinha, mas não encontrava, até que avistei, em meio a pedras vulcânicas e árvores, uma mulher de cabelos negros que vestia um longo vestido azul, que se movimentava conforme o vento soprava. Meu Deus, não pode ser ela.

- Mãe! - acordei aos gritos, sentando-me rapidamente na cama.

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