"Eu não sei em quais mãos esta carta poderá chegar, mas com certeza muitos se mostrarão céticos perante o meu relato. Mas tais coisas aconteceram de fato, apesar do que meu psiquiatra e a polícia dizem sobre isso. Eu fui injustamente acusada de homicídio e maus tratos contra animais, embora o sangue esteja, supostamente, em minhas mãos. Eu fui presa em flagrante em minha casa, em uma manhã de sábado e condenada a esse hospício e, antes que eu realmente comece a acreditar que eu estou louca e que tudo aquilo foi uma alucinação, quero passar a informação adiante, sobre as coisas que podem estar a espreita mesmo quando não há ninguém. Claro que uma coisa assim é muito difícil de explicar e até agora não consigo achar palavras certas para descrever a criatura, o bastante para os médicos da mente tratarem o que lhes digo como mero balbucio de uma louca."
"Apesar do que me foi avisada muitas e muitas vezes, eu voltei para casa à noite, sozinha e a pé. Eu não consigo me lembrar adequadamente o porquê, mas eu me lembro de música alta e dança, coisa que, para uma mulher de meia idade, não é algo tão comum. Eu estava descendo uma rua, e a o som vibrante da luz dos postes luminosos acima era a única coisa que eu conseguia escutar, à distância, além de meus próprios passos e respiração. Disso eu lembro muito bem: o cenário, a luz alaranjada criando círculos no asfalto e a rua se estendendo até uma continuidade mais retilínea abaixo. Acho que estava descendo algum morro, essas elevações que são controladas muitas vezes por facções criminosas, muitas vezes são favelas ou algo assim; tenho pouco conhecimento sobre, já que foi uma das minhas primeiras festas em um lugar assim. Os acontecimentos posteriores a isso me deixaram com a memória afetada para conhecimentos tão comuns, além disso, o bastante para saber apenas que estava cursando Arqueologia em alguma universidade."
"O álcool ainda aquecia meu corpo um pouco, mesmo naquela noite fria; claro que eu havia levado uma blusa de frio, mas ainda sim estava gelado. Eu fechei meus olhos por um instante, para respirar fundo e encolher meus braços mais ainda perto de meu corpo. Eu olhava constantemente os arredores, para ruas que se estendiam até mais a frente, e ruas menores que faziam curvas e tinham espaço para apenas um carro passar, ida ou volta, e nessas piscavam luzes ainda mais fracas e fluorescentes. No absoluto silêncio, na absoluta solidão, minha mente começou a imaginar e a idealizar medos terríveis que me faziam tremer mais do que o frio o fazia, a ponto de começar a ficar paranoica. Claro que, nesse país, uma mulher andar sozinha nas ruas já é muito perigoso, ainda mais tarde da noite, infelizmente. Uma brisa fria passou pelos meus cabelos, coisa que me fez arrepiar e suspirar para tentar me manter aquecida. Foi quando aconteceu. Naquele momento, eu não sabia mais se as vozes, abafadas pelo opressor silêncio, eram minha imaginação, minha mente me pregando peças, ou de outra pessoa; mas em meio a tais palavras, foi quando escutei um roçar metálico e constante, vindo da minha esquerda, coisa que fez-me arrepiar completamente a espinha, e o pico de adrenalina me fez congelar no lugar, como se com um mero movimento eu fosse sofrer a mais terrível das punições."
"Minha cabeça devagar e de forma travada se virou para a direção daquela rua, foi quando presenciei um horror inimaginável, quase indescritível, e muitos outros prefixos negativos. Estava devorando algum animal, devido às marcas de sangue e a poça que eu via através de seu corpo longo e achatado e quitinoso. Era escuro, e eu poderia descreve-lo apenas com uma semelhança à uma centípoda, embora a criatura seja cerca de cinquenta; não, cem vezes maior. Devia ter uns três ou quatro metros de altura, estando ela meio erguida sobre as inúmeras patas de trás. Apenas de escrever tal relato, as lembranças me trazem os mais terríveis e desagradáveis arrepios. Suas patas... Algumas pareciam mãos humanas, outras ossos muito grandes e retorcidos entre si; outras pareciam faltando. Isso - suas patas - foi a primeira coisa que eu vi, mas gradativamente meus olhos subiram e arquearam pelo corpo da criatura, perscrutando um horror. Não consigo descrever exatamente o que tinha mais por toda a extensão de seu corpo achatado; pareciam centenas, milhares de insetos e algumas coisas que me trazem ânsia de vômito e ao mesmo tempo o terrível pensamento de que não eram daquele mundo. Vermes tubulares, escavando e devorando uma parte da estrutura quitinosa, descendo como toupeiras, e emergindo em outros lugares."
"O som metálico parou, e a criatura lentamente virou-se para mim. Eu me lembro bem o que aconteceu com meus ouvidos, que rapidamente foi bombardeado com um ensurdecedor silêncio, um zunido agudo, e eu pude escutar minha respiração muito acelerada, criando agora uma fumaça esbranquiçada com o expirar do ar de meus pulmões. Naquele momento, eu não conseguia pensar em mais nada. Conforme o corpo da criatura se contorcia, eu escutava sons horríveis, como se ossos estivessem se quebrando; seus movimentos eram duros de primeira, mas logo se tornavam fluidos, como uma serpente, virando sua carapaça em minha direção. O primeiro olhar para o que parecia ser o semblante, ou pelo menos os restos do rosto da criatura foi muito rápido, pois o horror inimaginável me fez fechar os olhos. Meu corpo estremeceu, e lentamente abri meus olhos mais uma vez, expirando completamente o ar de meus pulmões enquanto novamente perscrutava a parte mais superior do corpo achatado da criatura. Nem mesmo os melhores desenhistas ou escritores conseguem descrever tal visão, pois a coisa inominável me encarava, com seus dois globos de vidro, e sua boca circular. Suas outras feições, eu não consigo - e nem me atrevo - a escrever; mas era tão grotescamente... Hominídeo."
"Eu não me lembro que delírios eu tive, que espasmos viciosos e convulsões macabras meu cérebro me fez sofrer, mas logo eu estava correndo, gritando loucuras - e em outro momento estava no chão, rindo e chorando em frequências que nem eu mesmo sabia que podia emanar, enquanto sentia o sangue inundar minhas costas, e um viscoso líquido verde por minha pele. Que tipo de horrores eu presenciei, acontecendo até mesmo em meu próprio corpo, eu não consigo descrever, mas eu me lembro de acordar em minha cama; e esses lapsos continuam acontecendo. Eu me lembro da polícia, do som da porta se quebrando, e do sangue em minhas mãos. Meu gato... Ah, precioso Peanut; tão negro quanto a manifestação de Érebo... Apenas a lembrança dele, de seus interiores... Eu não consigo. Sinto muito. Eles me disseram que eu matei um homem, mas eu não me lembro de nada e eu não queria; eu não queria. Eu só estava com fome, com tanta fome... Oh, Peanut... Me perdoe... O que foi que eu fiz?"
"A última lembrança que eu tenho daquele dia foi eu me olhar no espelho, e o que eu vi lá... Se existir qualquer tipo de entidade ou ser que comande ou traga justiça a esse universo - pois pessoalmente não acredito em mais nenhum, não após os horrores que eu vi -, por favor me perdoe; mas o que eu vi lá foi o semblante da criatura, estampada em meu rosto, com minha boca circular cheia de sangue, e meus dois globos brancos. E o som do metálico roçar em meus ouvidos."
YOU ARE READING
Antigos
Horror"Nossas mentes limitadas não podem sequer pensar o que está além de nosso próprio mundo, nosso próprio cosmos. Não importa o quão longe chegue, o caminho se estende ao infinito; e é impossível ter completa noção do infinito."