A dor do Oceano

19 4 0
                                    

Deitada como um animal sedento por sangue no canto frio e escuro do quarto, Margot estava abraçada aos joelhos, mordendo e arrancando pequenos pedaços de pele dos lábios, e mastigando a ponta dos cabelos que tinha um gosto metálico dentro de sua boca.

Ela ofegava como um corpo possuído por um demônio, pois estava se contorcendo em ira por ter deixado sua vida livre e feliz para trás. Tinha em mente que deveria pagar pelo que escolhera, já que desobedeceu ao pai, causou desordem no oceano e amou a quem não a verdadeiramente amava.

Margot segurou contra o corpo o pequeno punhal de prata dado por suas irmãs a muito tempo atrás, ornamentado por conchas pequenas e delicadas. O metal frio queimava contra sua pele, e como castigo e amargura, ela fez um pequeno corte na coxa pálida. Ela amaldiçoou amargamente o dia em que se apaixonara e entregara sua vida por um simples homem, que frequentemente a traia com camponesas e prostitutas. Como sempre, encontrava-se sozinha em seus aposentos, já que não era mais artigo de estimação de seu marido.

Margot se levantou, cobriu sua nudez com um tecido de seda e vagou a procurar seu marido pelo palácio. Tropeçou algumas vezes, mas prosseguia caminhando descalça pelos corredores que eram iluminados pelas tochas tremeluzentes. Embolou os pés nos tecidos macios. Todas as juras de amor eterno foram corroídas pelas vezes que fora traída.

Uma criada passava por ali com uma pilha pesada de panos limpos dobrados sobre os braços.

A mulher gritou ao ver sua rainha com a faca em mãos, pouco suja de sangue, decadente com as mãos apoiadas nas paredes.

Margot correu dali, e decidiu procurar sozinha, devido à adrenalina que pulsava em seus ouvidos. Ela abriu portas, escancarou janelas, até alcançar as embarcações fora do castelo, já que o Rei não estava em lugar algum. Não conseguia falar. Isso corroía suas entranhas. Não conseguia sequer expressar sua voz através de berros que estilhaçavam vidros como ela podia fazer quando era sereia. Sua visão turva de sangue e ódio não facilitava. Cambaleando, ela subiu nas embarcações e o caçou. Sua boca espumava em sal puro, que era eliminado em cusparadas para longe de si. Linhas de saliva pendiam de sua boca como tirolesa. Margot finalmente o encontrara, num dos porões do navio e começou a salivar muito mais.

O rei dormia nu, com o corpo entrelaçado a de uma mulher. Seus cabelos negros se perdiam sobre o chão, e sua pele brilhava como sol, devido a seus dias vagando em grandes navios em alto-mar. Margot tivera orgulho disso e achava que toda sua família submarina estava errada ao querer corrompe-la a voltar para as águas distantes. De repente, toda a energia do local quase escuro foram sugadas pelos poros de Margot, trazendo para si uma melancolia que nunca sentira antes.

Margot ergueu o punhal, mas não conseguiu cravá-lo na pele de nenhum deles. Seu braço parou no ar. Por mais ódio que sentisse, ela deixou que a faca caísse no chão de madeira, e logo em seguida ela fugiu apressada para longe dali. Talvez a necessidade do rei não fosse apenas prazer carnal, mas sim algo muito mais profundo, como as camadas de sua alma distante que Margot já não conseguia mais tocar.

Ela cortou os pés em pedras afiadas na areia enquanto corria, e sangrando, deixou que a água lavasse seu corpo quando ficou quase submersa abaixo de um céu tempestuoso. O mar agitado sugou suas roupas as roupas. Sufocou-se com o sal. O oceano pareceu sentir que Margot falhara na promessa que fizera a suas irmãs de executar o rei. Os peixes a envolveram como um redemoinho a engolir seu corpo para o a profunda morte do oceano. Margot se segurou numa pedra quando sentiu a correnteza puxando-a para longe da costa. Ela chorou e pediu silenciosamente perdão ao pai por tê-lo desobedecido. As águas aqueceram sua nudez, assim como uma chuva começou e molhou com água pura o topo de sua cabeça. Tudo parecia apedrejá-la, assim como as gotas que caiam do céu eram como pedras sobre seus cabelos.

Não podendo mais culpar-se, Margot apenas sentiu as mãos se soltando da pedra, enquanto seu corpo se desfazia em uma espuma densa, quente e salgada.

Princesas infelizes para sempreOnde histórias criam vida. Descubra agora