A família encontrava-se acordada, nenhum deles havia tido coragem de pregar o olho. Mary estava abraçada com sua mãe no canto do quarto, enquanto seu pai e irmão estavam sentados barrando a porta, na outra extremidade do cômodo. Percebiam, com o passar das horas, o silêncio fazer-se presente do lado de fora, o que antes era gritaria e choros tornou-se somente o som do fluxo de ar. Tal fato apenas ajudava a criar uma densa tensão sobre os ombros de cada um, deixando cada membro da família apreensivo. Pensavam que se resolvessem sair de onde estavam, teriam o mesmo destino de seus vizinhos, a morte.
Após muito tempo se esvair, Osman arrastou seu corpo para perto da janela e decidiu espiar, logo constatando que os cruzados tinham ido embora e levado consigo inúmeras almas. Ayla então permitiu-se chorar, ainda que tomasse cuidado para não fazer muito barulho. Mayar sentia uma mistura de sensações, felicidade, por estar viva junto a seus parentes, tristeza, por reconhecer que seu lar devia estar cercado de cadáveres, alívio, por saber que a marcha dos cruzados tinha partido, angústia, por ter sido incapaz de fazer qualquer coisa... Seu coração parecia estar destroçado e acalentado ao mesmo tempo.
Aslan levantou-se, assim sendo o primeiro a juntar forças suficientes para ficar de pé. Em seu semblante o mesmo demonstrava estar atordoado, seu olhar estava perdido. Ele abriu a porta lentamente, adentrando a sala em seguida. Alguns pertences da família estavam jogados no chão, outros estavam até mesmo quebrados, a casa havia sido parcialmente revistada. Talvez os cruzados tiveram problemas, algum fator externo fez com que os mesmos desistissem de vasculhar o lar, foi a reflexão que cruzou a mente do garoto. A menina seguiu de encontro a seu irmão, espantando-se ao ver o estado em que o aposento se encontrava. Assustadora era a ideia de que os soldados católicos estiveram tão próximos de descobrir o esconderijo deles. Era questão de uma porta ter sido aberta e não haveria sequer um Akif para contar história.
Os dois seguiram em direção ao outro quarto, percebendo que a situação de tal cômodo era a mesma do anterior. Mary sentiu seu corpo estremecer.
— E-Estaríamos m-mortos Mayar... — as palavras saíam de sua boca lentamente, o medo que sentia era perceptível toda vez que gaguejava - Mortos.
Aslan deixou que seu corpo pesasse, seus joelhos indo de encontro ao chão. A menina, tão atordoada quanto o irmão, chegou perto dele e sentou-se ao lado do mesmo, repousando a cabeça do garoto em seu ombro esquerdo. Por dentro, ela queria debulhar-se em lágrimas, gritar, espernear, mas algo falava mais alto, talvez fosse uma espécie de instinto. De qualquer forma, ela não se deixou abalar, pelo menos não visivelmente. Naquele momento era ela que estava no posto de pilar, era ela quem dava suporte ao gêmeo para que ele não caísse no abismo do desespero.
Seu irmão acabou por adormecer daquele jeito e Mary, que não conseguiria o levantar, juntou seu cobertor em um bolo e depositou a cabeça do menino ali mesmo. Dirigiu-se para o quarto de seus pais, no intuito de ver como eles estavam e deparou-se com a cena dos dois sentados na cama e abraçados. Esse tipo de situação era coisa rara, Osman não costumava ser o tipo de homem carinhoso. Parecia que a guerra, por pior que fosse, havia, de alguma forma, unido todos.
— Não posso acreditar... — seu pai começou a falar — A cidade confiava tanto nos Bürsin, nossas famílias iriam se unir em matrimônio. — seus olhos pareciam estar marejados — Como puderam descuidar da fronteira, pôr tantas vidas inocentes em risco? Estiveram aqui ontem...
A família Bürsin era uma das mais influentes por conta de os homens de tal família serem reconhecidos como os melhores soldados de Niceia e os mesmos, com o passar do tempo, tornaram-se responsáveis por tomar conta da fronteira principal. Por tais fatos, casar-se com um deles deveria ser motivo de orgulho, mas agora, mesmo Osman parecia não mais pensar de tal maneira.
Sem saber o que fazer, a garota retorna a sala e senta-se próxima a janela, sentindo o ar gélido tocar sua pele e começar a varrer pensamentos ruins de sua mente, apenas por ora, para que finalmente seu corpo pudesse descansar.
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Mary abriu os olhos lentamente, observando o cômodo ser colorido pelo laranja do pôr do sol e, por um instante - por um mísero instante - ela esqueceu do ocorrido, mas sua breve amnésia acabou assim que ouviu um estrondo vindo dos fundos. Levantou tão rápido que sentiu-se tonta. Pode então ouvir gritos de socorro, os quais pareciam ser de sua mãe.
Escorando-se nas paredes, Mayar foi de encontro aos gritos. A primeira coisa que viu foi uma pequena trilha de sangue, depois seu pai, o qual tinha em sua mão esquerda um facão coberto de sangue, suas vestes e rosto também tinham tal líquido vermelho estampado. Um jovem homem de roupas simples, mas que tinha nas mesmas um broche dourado (aparentemente feito de ouro), estava jogado no chão próximo a porta, com uma enorme ferida aberta na cabeça.
A menina não pode conter o espanto. Já imaginava que tal homem não tinha tido boas intenções e que seu pai apenas estava defendendo a família, no entanto, tal cena ainda era aterrorizante para ela.
Percebeu então que seu pai não tinha apenas gotas de sangue em seu rosto, mas que lágrimas também faziam-se presentes. De repente voltou de seu transe e o som abafado da voz de sua mãe voltou a ecooar em sua cabeça, dessa vez em alto e bom som.
— Meu filho! Meu filho!
Seguiu as palavras de desespero e deparou-se com Ayla sentada em frente ao corpo de Aslan, que também apresentava um corte no crânio.
Permitiu que seu corpo caísse e as lágrimas torrentes então escorreram de seus olhos.
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A Filha Das Sombras - Guerra Sangrenta [HIATUS]
Fantasy"Na guerra não existe o meio termo, ou você escolhe um lado, ou tem a morte como destino." Mayar (Mary) bem sabia disso e, por tanto, como a boa filha que era, estava ao lado de quem quer que seus pais apoiassem, mesmo que isso pudesse ir contr...