A pensão estudantil, conhecida como "pensão/república da dona Marta" sempre foi o lugar perfeito para descansar, o único lugar onde a palavra república ainda tinha algum significado.
Era uma pensão, não especificamente uma república, porém era alugada a décadas apenas para garotas que vem fazer o ensino superior.
Sem tumultos na Vila Madalena, sem nada que pudesse trazer ainda mais caos a aquele ano de 1969
1969. Quem poderia ter leveza naqueles anos de chumbo?
No inicio da manhã, Nádia acordava com seus habituais olhos de ressaca como os de Capitu, vestindo apenas uma camiseta larga e calcinhas, ela nem se levantou, soltou um suspiro longo e esticou os braços para pegar a sua carteira de cigarro que repousava no criado mudo ao lado da sua cama. Tinha sorte de estar na calmaria da Vila Madalena, muitos de seus colegas da faculdade de jornalismo não tiveram a mesma sorte.
Muitos torturados e presos. Nádia ouvira que a tortura estava apenas começando, e que os militares iam fazer ainda pior
Ela acendeu o cigarro e olhou pra cima, dando tragadas e mais tragadas, apenas observando aquela fumaça subir até o teto do quarto silencioso. Lembrou-se do que dona Marta a havia dito a duas semanas atrás
"Logo minha querida, aqui não estará mais tão silencioso afinal, duas companheiras de quarto estão para chegar nas próximas semanas, uma do Rio de Janeiro e outra de Santa Catarina"
Estava bem com seu silêncio, não precisava de mais duas garotas implicando com seu cigarro, com sua bagunça ou com os amigos que recebia ali, não veio da Paraíba até São Paulo para isso. Gostava de calmaria para estudar e fazer as suas outras atividades. Porém melhor que a pensão república de dona Marta não haveria de encontrar em nenhuma outra parte de São Paulo, e ainda tão perto da Universidade!
A fome não a permitia ficar um pouco mais na cama quanto queria. Gostava do sábado por que podia dormir a vontade. Ligou o rádio e ainda com o cigarro na boca vestiu sua minissaia. A rádio tocava "a Namoradinha de um amigo meu" de Roberto Carlos. Será que alguém ainda dava a mínima para a Jovem Guarda? Chega de "Broto, brasa mora e Prafrentex"!
Nádia abriu a janela assim que terminou de se vestir e deu de cara com Carlos, um garoto extremamente chato que residia ali perto da pensão república, estudante de direito e que aparecia na janela do quarto de Nádia praticamente todos dos dias. Carlos parecia particularmente animado naquele sábado.
- Ei, Nádia. O que ainda faz aí nos seus aposentos ao meio dia? O dia já começou, saia, venha ver a vida! - exclamou com uma animação que chegava a ser irritante, e Nádia apenas sorriu
- Bom dia para você também, Carlinhos! - riu e deu uma última tragada no seu cigarro
- Já te disse que essas porcarias vão acabar com o seu pulmão e com esse seu rostinho de broto jovial e lindo, Nádia, pena que você nunca me escuta não é? - disse Carlos, a repreendendo
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1969
Historical FictionAs jovens Nádia, Cecília e Maria Júlia são estudantes de lugares diferentes do país residindo em uma pensão república em São Paulo, no bairro estudantil Vila Madalena, no ano de 1969. Com o auge da ditadura militar no país, os movimento negro, fem...