Abro a porta e entro em nosso universo particular. Nosso, é tão esquisito dizer isso. Contudo, também é bom, muito bom. Na verdade, ainda estou me acostumando, você sabe. Todos os dias percebo como isso é diferente de um mundo de faz de conta.
Meu bem, agora eu também faço parte desse universo que antes era só seu e dela...
Entro e logo sinto o típico cheiro de bebê. A casa inteira exala o aroma incrivelmente adorável e doce dela. Ando pela sala, desviando dos brinquedos espalhados pelo chão, lembrando das incontáveis vezes que pisei em carrinhos, bonecas e – o pior de todos – peças de lego, ignorando a dor e a tremenda vontade de soltar um palavrão. Primeira regra da casa: evitar palavrões, pois ela está na fase de repetir tudo o que os outros dizem.
No nosso universo, aprendi que, durante a noite, os filmes devem ser assistidos em um volume próximo a um sussurro. O momento de lavar louça, que poderia ser concluído em vinte minutos, leva uma hora, porque ela quer lavar junto com você, ou comigo. As comidas são coloridas, e eu desenvolvi a incrível habilidade de colocá-las em formato de coração ou estrelinhas. Na geladeira sempre tem iogurtes. Seis e meia da manhã é a hora do mingau. Apenas no final de semana é permitido comer besteiras (ou nós dois comemos escondidos).
Minha vontade de ter você, por vezes, tem que ser contida. Te vejo com o cabelo bagunçado, usando um short qualquer e um blusão meu, e sinto a eletricidade correr pelo meu corpo. Fico cheio de tesão, desesperado por um beijo seu, querendo sentir sua pele deslizando na minha, desejando te arrepiar com o trajeto dos meus dedos. Você, fazendo aquilo que chama de "coisas de mãe", sorri de canto, com uma malícia gostosa, e me lança aquele olhar que diz "eu sei o que está passando pela sua cabeça. Eu também quero, mas espera". As vezes o sexo tem que ser silencioso e rápido. Mas, na real, tudo que eu preciso é escutar você emitindo um som de satisfação.
Você não sabe, mas, certa vez, ela me chamou de pai. Eu não soube o que pensar ou falar, e fiquei visivelmente assustado e sem reação. Ela é esperta, acho que notou como me paralisou. Crianças pequenas já percebem isso, não? Porém, foi só uma vez. No restante dos dias voltei a ser o "tio".
Confesso que nunca me imaginei vivendo isso. Não sabia que eu era capaz de amar tanto uma pessoinha que não é minha. Uma pessoinha que hoje já sei até quanto pesa, qual o seu comprimento, o que lhe provoca alergia e os significados de cada choro.
Meus amigos bagunçam comigo, me chamando de "padrasto", como se isso fosse uma piada. Dão risada do fato de eu decidir cuidar de uma criança que não foi feita por mim. É, os cachos, os sinais, e cada traço do rosto dela lembram-me todos os dias que alguém esteve ali antes de mim, e que esse alguém já te deu o melhor presente da sua vida.
Ainda assim, eu quis ficar. Quis aprender a tocar "Ben" para ela, e "Partilhar" para você. Quis ser o acompanhante dela na piscina de bolinhas do shopping, ou aquele que espera os lanches ficarem prontos enquanto você a leva para brincar. Quis ter uma playlist com o nome dela no spotify, repleta de canções que escutamos juntos, geralmente quando você está no banho ou intensamente envolvida com a leitura de um livro.
Comecei a amar você e ela também, porque, porra, eu posso dizer com a maior certeza do mundo: vocês duas são os seres mais bonitos que eu tive a sorte de conhecer.
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Padrasto [conto]
Cerita Pendek"Meu bem, agora eu também faço parte desse universo que antes era só seu e dela..." Padrasto. Um conto bem curtinho sobre como é partilhar o universo com outro alguém. ❤️