Capítulo Único

1 0 0
                                    

O barulho do sininho soou pelo estabelecimento aquecido,mas não tive vontade de olhar quem entrava ou saia do local.Não tinha coragem de erguer a cabeça.

Minha mão esquerda estava apoiada sobre a mesa branca,enquanto permitia-me batucar a madeira com as unhas.O indicador de minha mão direita deslizava pela borda circular da xícara de porcelana,o vapor quente do achocolatado embaçando as lentes de grau do meu óculos.Deixei um suspiro frustrado escapar,fechando fortemente minhas pálpebras pesadas e fazendo o máximo de esforço possível para não deixar que as lágrimas que voltavam a queimar meus olhos,rolassem por minhas bochechas coradas.

Mas não consegui.

Uma por uma,quente e salgada,elas deslizaram por minha face,deixando um rastro molhado para trás.

O ar pareceu mais pesado de repente.Meu peito parecia cada vez mais comprimido sob os pesados tecidos que cobriam meu corpo.As poucas vozes que me cercavam se tornaram abafadas,quase inexistentes.Eu perdi meu foco.

Antes que meu estado se tornasse constrangedor,retirei os óculos afim de limpa-los,e aproveitei para passar a barra da manga comprida de meu moletom sobre meus olhos e bochechas,devolvendo o objeto de lentes redondas ao meu rosto.

Com cuidado,retirei o pequeno caderno de capa azul que carregava na mochila jogada no assento ao meu lado,assim como uma caneta de tinta preta.

Abri em uma página qualquer e fiquei encarando a folha em branco,manchada apenas pelas claras linhas horizontais.Minhas mãos tremiam quando levei a ponta da caneta a escrever o que não tinha coragem de dizer olhando em seus olhos negros e brilhantes como uma noite estrelada.

Olá Call,sou eu,Anny.
Já faz uma semana não é?Sete dias que não nos falamos.Sete dias desde que você se declarou para mim e eu não lhe respondi. Porque fugir me pareceu mais fácil.
Me desculpe Call...me desculpe por não conseguir acreditar em suas palavras.
Você se lembra de quando nos conhecemos?
Havia sido um dia conturbado para mim,e para espairecer a cabeça,sai de casa sem rumo e entrei no primeiro lugar que me pareceu seguro e reconfortante.A cafeteria estava quase vazia no fim daquela tarde,os poucos clientes estavam espalhados pelo ambiente de decoração moderna
Eu me sentei em uma das mesas mais afastadas,e esperei para ser atendida por alguém.Não foi necessário muito tempo para que um corpo alto e embrulhado em um uniforme preto e branco aparecesse ao meu lado.Você não olhou em meus olhos quando perguntou-me o que eu desejava pedir,parecia tenso enquanto anotava meu pedido no pequeno bloco que carregava em suas grandes mãos.
Mas ei Call,eu notei!
Notei que durante todo o tempo que permaneci sentada sobre aquele banco acolchoado,seu olhar permaneceu em mim.E quando eu tentava revidar as encaradas,você era rápido em desviar e fingir está fazendo algo atrás do balcão.
Eu não voltei mas àquela cafeteria depois desse dia,e esperava não reencontra-lo outra vez.Mas o destino talvez não tivesse as mesmas ideias que eu.
Me foi uma surpresa entrar na universidade,e no meio de tantos rostos desconhecidos e que não me chamavam a atenção,meu olhar encontrar justamente o seu.Mas não foi nada surpreendente o ver desviar a atenção,e logo buscar seguir pelos corredores,se infiltrando em meio aqueles jovens barulhentos.
Foram cerca de duas semanas Call,quatorze dias até você tomar coragem e decidir vir falar comigo.Seu rosto estava vermelho,e sua voz saia gaguejada. Mas eu não me importei.Não teria porque me importar afinal.
Não sei se foi meu jeito mais calado,ou minhas ações que deixavam claro que eu não ligava muito para o que acontecia a minha volta,mas acho que você entendeu as coisas de outra forma,a sua forma,e decidiu que passar a me fazer companhia não era algo que me desgradava.Bom,você não estava completamente errado.
Eu não me importava em ter sua companhia nos intervalos das aulas,ou no caminho para minha casa.Não me importava em aceitar seus convites para sair nos finais de semana,ou para ir a sua casa depois de um cansativo dia de aula,para podermos jogar videogame ou assitir um filme em seu sofá.
Mas ei Call,eu simplesmente não me importava com muita coisa nessa vida.Não me fazia diferença.
Você passou a se considerar meu amigo,e dizia para mim que eu era a melhor coisa que acontecera em sua vida.Não foi preciso muito tempo para você se sentir a vontade comigo,para começar a confidenciar seus pensamentos e sentimentos a mim.Mas eu sabia que no fundo,você me escondia algo.Eu apenas não sabia o que era,e preferia que continuasse daquela forma.Porque no final, aquilo não me importava.
Seus pais gostavam de mim.Quando eu ia a sua casa,e você desaparecia em seu quarto por longos minutos,eles vinham até mim e não poupavam falas.Diziam que eu te fazia bem,que ficávamos bem juntos.Eu não discordava deles.Mas nunca ousei concordar também.
Ei Call,quando foi que as coisas começaram a mudar para você?Ou será que elas sempre foram assim,desde o início?
Seus olhares passaram a se demorar mais sobre meu rosto,talvez você achasse que eu não os percebia,ou não ligava para isso.Seus toques pareciam mais quentes e mais carinhosos,suas palavras começaram a carregar novos sentidos.
Me desculpe Call.
Me desculpe por não ter esclarecido as coisas quando ainda era tempo.
Foram meses de amizade.Até que chegou aquele dia.
Você não devia ter se declarado para mim Call.
Ninguém pode.
Suas palavras carregadas de sentimentos,seus olhos brilhantes e tão vividos enquanto me encarava,sua voz trêmula,porém cheia de convicção do que dizia.
Me desculpe Call.
Me desculpe por não acreditar em nada do que disse.
Eu queria acreditar.Mas nada me parecia real o suficiente.Entre tantas pessoas neste mundo,entre tantas garotas a sua volta,porque justo eu?Alguém que não se importa o suficiente.
Me desculpe Call.
Me desculpe por ter deixado que esse sentimento crescesse em você,por ter deixado que ele criasse raízes em seu coração e mente.
Me desculpe por não poder retribuí-lo.Por acreditar que não sou o suficiente para você.Por não ser merecedora do que tens a me dar.
Me desculpe por não ter nada a lhe oferecer.Nada além da minha amizade desajeitada e fraca.
Me desculpe por não ter amor o suficiente dentro de mim,a ponto de transbordar e preencher outro alguém.
Me desculpe por ser um copo quase vazio e rachado.
Desculpe Call...
Desculpe por não ser eu a te amar.

Quando eu descansei a caneta sobre a mesa,senti meus olhos queimarem.Mas dessa vez eu fui mais forte,e com um pouco mais de esforço,impedi que as lágrimas viessem outra vez.

Rasguei a folha,agora preenchida com minhas palvras,e dobrei o papel duas vezes,deixando por fim a quem era direcionada àquela carta antes de guardar o caderno e a caneta em minha bolsa novamente.

Levantei-me rapidamente,jogando a mochila sobre meus ombros,deixando o copo com a bebida já não mais quente intocada para trás.Segui a passos silenciosos  até o balcão,e esperei até que a garota de cabelos ruivos e ondulados que estava atrás dele desocupasse e viesse até mim.

__Ah,olá Anny!Já faz tempo que não a vejo aqui.Você sumiu da escola essa semana também.Acredito que as coisas não estejam sendo fáceis para você,não é  mesmo?__A bela garota de pele salpicada por manchinhas claras desatou a falar,me desconcentrando por um breve instante.

__Ah sim,eu fechei a matrícula Sorah,estou de mudanças.__Decidi esclarecer.Uma feição de entendimento lhe cobriu ao deixar um pequeno sorriso escapar.__Você poderia me fazer um favor?

__Claro,é só dizer.

__Poderia entregar isso ao Call?Sei que hoje é seu dia de folga,então pode entrega-lo amanhã.Apenas me garanta que não vai lê-lo,é algo pessoal.__Disse arrastando o papel dobrado pela madeira do balcão até próximo a palma direita de Sorah. Mas ela não fez menção de pegar a carta.A encarei por sob a franja negra,notando o olhar perdido e confuso dela.__O que foi?

__Você...Você não está falando sério,está?

__O que?Porque não estaria?Estamos afastados no momento,e não estou pronta para vê-lo ainda.Apenas diga que pode entregar isso a ele por mim.__Tentei mais uma vez,balançando a folha a sua frente.

Os olhos de Sorah se arregalaram,e sua mão de unhas compridas foram parar em frente a boca,enquanto um resmungo que não pude entender saiu por entre seus lábios escondidos.

__Então você não soube?Realmente não conseguiram falar com você?

__Falar o que Sorah?Diga logo de uma vez!__Elevei a voz,cansada daquela situação.Mas logo me recompus ao notar os olhares que caíram sobre mim.__Se não pode,ou não quer me fazer esse favor,é só dizer.

Ela negou com a cabeça,deixando um suspiro escapar antes de voltar a me encarar.

__Anny,o Call sofreu um acidente de carro semana passada.Um veículo desgovernado atingiu seu carro enquanto ele ia a caminho de casa.O Call entrou em estado de coma.Achei que já soubesse.

Bom,eu não sabia.

Não sabia que enquanto eu estava perdida e confusa com a avalanche que suas palavras me trouxeram naquela noite,meu amigo estava desacordado em uma cama de hospital.

E a culpa era minha.Eu sentia que a culpa era minha.Não foi um veículo desgovernado que o causou isso.Fui eu.

Não consegui ouvir mais nada que Sorah dizia.O papel amassou completamente com o aperto firme de minha mão.As lágrimas que antes eu segurei,vieram com tudo dessa vez,agora acompanhadas dos fortes soluços e o tremor que as roupas quentes não conseguiram frear.Meus passos apressados me levaram a saída da cafeteria,o vento gelado atingindo meu rosto molhado.

Eu quis gritar.

Eu quis afundar meu corpo contra a parede em que havia me recostado.

Eu quis arrancar a dor que me perfurou de dentro para fora naquele momento.

Mas eu só consegui chorar.

Talvez agora eu estivesse sentindo.Talvez agora eu estivesse me importando demais.

Me desculpe Call.

Me desculpe por nunca fazer o certo.

Me desculpe por ser alguém que não vale a pena.Por ser alguém que está se importando demais,mas que não tem coragem o suficiente para encara-lo outra vez.

Me desculpe.

SORRYOnde histórias criam vida. Descubra agora