PRIMORDIAL

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Se pedissem para descrever um anjo, eu falaria de Cecília.

Contaria dos fios dourados sempre bagunçados, do olhar atento e travesso, dos olhos em algum tom entre azul e cinza como um céu em prelúdio de tempestade, das bochechas pálidas que eu fazia corar com facilidade, do sorriso largo com dentes separados, a boca delicada como todos os seus traços, das constelações de pintas que encontrei pelo seu corpo em antagonismo de ser tão frágil e tão forte. Não deixaria de mencionar a tranquilidade que passamos uma vida tentando alcançar, mas que só chega quando entendemos que ela está por acabar.

Se perguntassem se acredito em criaturas celestes, negaria, não poderiam existir na mesma realidade em que os horrores que presenciei.

Os anjos estão mortos e Cecília também.
Há quanto tempo ela morreu?

Arrasto-me no escuro à procura de seu corpo. Preciso confirmar mais uma vez, ainda não parece real.

Há quanto tempo estamos aqui?

Deus, ela vai começar a apodrecer. Será que meus pais já estão na cidade? Estão me procurando, certeza. Vão me levar pra casa.

Não.

Mesmo se estiverem não vão me achar nesse buraco. Vou ficar presa aqui, morrer aqui. Frio, fome ou coisa pior, elas vão me usar também, o diabo sabe como.

Meu coração bate tão forte e rápido que sinto em meu peito, minha respiração acelera ao lembrar-me dos corpos que vi. Com qual daqueles o meu vai se parecer? Destripado como Aline - pensavam que tinha fugido com o namorado em 91 -, pendurado e cortado ao meio como Natália - achavam que tinha se jogado na laguna em 89 -, perfurado por grossas agulhas de metal como Jéssica - supostamente morta como vingança contra seu pai no ano passado -, degolado sangrando de cabeça pra baixo em um caldeirão, queimado, desmembrado, despelado ou ficará como aquelas massas de carne e ossos?

Por favor, que não me matem de um jeito muito doloroso, que seja rápido. Minhas mãos suadas começam a formigar, cada músculo do meu corpo contraído. O que vai acontecer com a minha alma? Puxo todo o ar que consigo, mas não parece suficiente, sufocando como um peixe fora do aquário.

Preciso me acalmar, Bianca, não surta, por favor. A voz do doutor Jonas ecoa na minha cabeça: "Percebe o teu diafragma, inspira fundo devagar e...".

Cheiro de mofo, sangue e morte.

Involuntariamente me projeto pra frente e sinto o gosto azedo subindo pela minha garganta. Que merda! Manter a calma? Presa com o cadáver de uma menina de 14 anos!

A tempestade aperta. Há quanto tempo está chovendo?

Não importa, o tempo sempre passou estranho nessa escola. Estudando aqui todos esses anos e não prestei atenção nas distorções causadas pela bruxaria delas. Eu poderia ter... feito nada. Qual o seu plano genial para acabar com magia e criaturas ancestrais?

Uma instituição antiga e respeitada que empregou a irmã da minha bisavó, educou minha mãe, avós e tantas outras moças das famílias ricas dessa cidade sem levantar suspeitas, mas Cecília sabia, de alguma forma sentia as vibrações desse lugar enquanto era drenada. Agora lá está sua casca seca no chão. Sento-me no outro canto da peça de olhos abertos na escuridão.
Finas gotas atingem meu rosto, tão geladas que parecem cortar, estou encharcada e tremendo. Um clarão cega-me por alguns instantes e quando minha visão se ajusta percebo que são faróis de carro, vejo a tempestade, as árvores que cercam a escola, o caminho até ao portão da propriedade e as escadas que levam à porta principal, nas quais estou sentada.

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