O quarto está impr
Tem cheiro de chuva da manhã.
egnado do cheiro de pedra molhada, solo
revolvido; o ar está úmido e terroso. Respiro fundo e ando na ponta dos
pés até a janela apenas para pressionar o nariz contra a superfície fria.
Sinto minha respiração embaçar o vidro. Fecho os olhos ao som de um
suave tamborilar permeando o vento. As gotas de chuva são minha única
lembrança de que as nuvens têm pulsação. De que eu também tenho uma.
Sempre me pergunto sobre as gotas de chuva.
Gostaria de saber como estão sempre caindo, tropeçando nos
próprios pés, quebrando as pernas e esquecendo-se de seus paraquedas,
conforme tombam direto do céu rumo a um fim incerto. É como uma
pessoa que está esvaziando os bolsos sobre a terra e parece não se
importar com o destino do conteúdo que cai, que parece não se importar
com o fato de que as gotas de chuva estouram quando atingem o solo, de
que elas se estilhaçam quando chegam ao chão, de que as pessoas
amaldiçoam os dias em que as gotas ousam tocar sua porta.
Sou uma gota de chuva.
Meus pais esvaziaram seus bolsos de mim e deixaram-me evaporar
sobre uma laje de concreto.
A janela me diz que não estamos longe das montanhas e que,
definitivamente, estamos perto da água, mas, hoje, tudo está perto daágua. Só não sei de que lado estamos. Para que direção estamos voltados.
Aperto os olhos à primeira luz da manhã. Alguém pegou o Sol e o fixou
novamente no céu, mas todos os dias ele paira um pouco mais baixo que
no dia anterior. É como um pai negligente que conhece apenas metade de
quem você é. Nunca enxerga como sua ausência muda as pessoas. Quão
diferentes somos no escuro.
Um sussurro repentino indica que meu companheiro de cela está
acordado.
Giro sobre meus pés como se tivesse sido pega roubando comida
outra vez. Isso só aconteceu uma vez, e meus pais não acreditaram em
mim quando disse que ela não era para mim. Eu disse que estava apenas
tentando salvar os gatos vadios que viviam pela vizinhança, mas eles não
acreditaram que eu fosse humana o bastante para me importar com um
gato. Não eu. Não algo alguém como eu. Além disso, eles nunca
acreditavam em nada do que eu dizia. É exatamente por isso que estou
aqui.
O companheiro de cela está me estudando.
Ele adormeceu completamente vestido. Ele está usando uma
camiseta azul-marinho e calças cargo cáqui enfiadas em botas pretas de
cano alto.
Estou usando fibras de algodão morto nos membros e um rubor de
rosas na face.
Seus olhos esquadrinham a silhueta de minha estrutura e esse
vagaroso movimento faz meu coração disparar. Apanho as pétalas de rosa conforme me caem do rosto, flutuam em volta da moldura de meu corpo
e me revestem em algo cuja sensação remete à ausência de coragem.
Pare de olhar para mim, é o que quero dizer.
Pare de me tocar com seus olhos, mantenha suas mãos afastadas e
por favor e por favor e por favor...
— Qual seu nome? — A inclinação de sua cabeça racha ao meio a
gravidade.
Estou suspensa no momento. Pisco os olhos e contenho a respiração.
Ele se move e meus olhos se estilhaçam em milhares de pedaços que
ricocheteiam ao redor do quarto, capturando um milhão de fotos
instantâneas; um milhão de momentos no tempo. Bonitas imagens
desbotadas pela idade, pensamentos congelados pairando precariamente
no espaço morto, um redemoinho de memórias que me cortam a alma.
Ele me faz lembrar de alguém que eu conhecia.
Uma respiração profunda e o choque me devolve à realidade.
Sem mais sonhar acordada.
— Por que você está aqui? — pergunto às rachaduras da parede de
concreto. Catorze rachaduras em quatro paredes em mil tons de cinza, O
chão, o teto: tudo a mesma laje de pedra. As armações das camas
construídas de modo patético: a partir de velhos canos de água. O
quadradinho de uma janela: grossa demais para quebrar. Esgotou-se
minha esperança. Meus olhos estão dispersos e doloridos. Meu dedo está
traçando um caminho preguiçoso pelo piso frio.
Estou sentada no chão que cheira a gelo, metal e sujeira. O companheiro de cela senta-se diante de mim, pernas dobradas por
debaixo dele, botas brilhantes demais para este lugar.
— Você tem medo de mim. — Sua voz não tem forma.
Meus dedos cerram-se em punho.
—Receio que esteja errado.
Poderia estar mentindo, mas isso não é da conta dele.
Ele bufa, e o som ecoa pelo ar que jaz entre nós. Não levanto a
cabeça. Não dou com os olhos que ele está lançando em minha direção.
Provo do oxigênio seco e gasto e suspiro. O aperto na garganta vem de
algo familiar para mim, algo que aprendi a engolir em seco.
Duas súbitas batidas à porta trazem minhas emoções de volta ao
lugar.
Ele se coloca de pé em um instante.
— Ninguém está lá — digo a ele. — É só nosso café da manhã. —
Duzentos e sessenta e quatro cafés da manhã e ainda não sei do que ele é
feito. Tem cheiro de muita coisa química; uma massa amorfa sempre
entregue em extremos. Às vezes doce demais, às vezes salgada demais,
sempre repugnante. Na maior parte das vezes estou tão morta de fome
que nem noto a diferença.
Escuto-o hesitar por apenas um instante antes de avançar rumo à
porta. Ele abre uma pequena fresta e através dela espreita um mundo que
não existe mais.
— Merda! — Ele praticamente arremessa a bandeja pela abertura,
parando apenas para bater a palma da mão contra a camisa. — Merda, merda. — Ele fecha os dedos e tensiona a mandíbula. Ele queimou a
mão. Eu o teria alertado se ele tivesse me escutado.
— Você deve esperar pelo menos três minutos antes de tocar a
bandeja — digo à parede. Não olho para as leves cicatrizes que adornam
minhas pequenas mãos, para as marcas de queimadura que ninguém
poderia ter me instruído a evitar. — Acho que eles fazem isso de
propósito — acrescento, calmamente.
—Ah, então hoje você está conversando comigo? — Ele está com
raiva. Seus olhos relampejam antes de ele desviar o olhar e eu perceber
que ele está mais constrangido do que qualquer outra coisa. Ele é um cara
durão. Durão demais para cometer erros estúpidos na frente de uma
garota. Durão demais para demonstrar dor.
Aperto os lábios e fito o lado de fora do pequeno quadrado de vidro
que eles chamam janela. Não sobraram muitos animais, mas já ouvi
histórias de pássaros que voam. Talvez um dia eu consiga ver um.
Atualmente, as histórias têm um enredo tão desordenado que há muito
pouco em que se acreditar, mas não foi só de uma pessoa que escutei
dizer que, de fato, viram um pássaro voando nos últimos anos. Portanto,
observo da janela.
Haverá um pássaro hoje. Ele será branco com listras de ouro igual a
uma coroa sobre sua cabeça. Ele voará. Haverá um pássaro hoje. Ele será
branco com listras de ouro igual a uma coroa sobre sua cabeça. Ele voará.
Haverá um...
Sua mão.
Em mim.
Duas pontas de dois dedos roçam por menos de um segundo meu
ombro coberto de pano, e cada músculo, cada tendão de meu corpo está
carregado de tensão e amarrado em nós que me comprimem a espinha.
Permaneço bastante quieta. Não me movo. Não respiro. Talvez, se não
me mover, este sentimento dure para sempre.
Às vezes penso que a solidão dentro de mim explodirá pela pele e, às
vezes, não tenho certeza se chorar ou gritar ou rir de histeria resolverá
alguma coisa. Às vezes estou tão desesperada por tocar, por ser tocada,
por sentir, que tenho quase certeza de que vou cair de um penhasco em
um universo alternativo no qual ninguém, nunca, será capaz de me
encontrar.
Não parece impossível.
Tenho gritado por anos e ninguém jamais me escutou.
— Você não está com fome? — Sua voz é mais baixa agora, um
pouco preocupada.
Há 264 dias estou morrendo de fome.
— Não. — A palavra é pouco mais que uma respiração entrecortada,
pois me escapa dos lábios e me viro e eu não deveria, mas faço e ele está
me encarando. Está me estudando. Seus lábios estão somente um pouco
apartados, seus braços, inertes ao lado do corpo, seus cílios, pestanejam
em trégua.
Sinto alguma coisa socar meu estômago.
Seus olhos. Alguma coisa em seus olhos. Não é ele não é ele não é ele não é ele não é ele.
Fecho-me ao mundo. Tranco-me. Giro a chave com firmeza.
A escuridão me sepulta em seus vincos.
— Ei...
Meus olhos se abrem. Duas janelas estilhaçadas enchendo de vidro
minha boca.
— O que é? — Sua voz é uma tentativa fracassada de monotonia,
uma tentativa ansiosa de indiferença.
Nada.
Concentro-me no quadrado transparente encravado entre mim e
minha liberdade. Quero estraçalhar este mundo de concreto e
esquecimento. Quero ser maior, melhor, mais forte.
Quero estar furiosa-furiosa-furiosa.
Quero ser o pássaro que voa para longe.
— O que você está escrevendo? — O companheiro de cela fala
novamente.
Estas palavras são vomito.
Esta caneta tremula é um esôfago.
Esta folha de papel é minha tigela de porcelana.
—Por que você não me responde? — Ele está perto demais perto
demais perto demais.
Ninguém jamais está perto o bastante.
Engulo a respiração e espero que ele dê o fora, como todos os outros
de minha vida. Meus olhos estão focados na janela e na promessa do que poderia ser. Na promessa de algo mais grandioso, algo mais importante,
alguma razão para a demência que se edifica em meus ossos, alguma
explicação para minha incapacidade de fazer qualquer coisa sem arruinar
tudo. Haverá um pássaro. Ele será branco com listras de ouro igual a uma
coroa sobre sua cabeça. Ele voará. Haverá um pássaro. Ele será...
—Ei...
— Você não pode me tocar — murmuro. Estou mentindo; é o que
não digo a ele. Ele pode me tocar, é o que nunca lhe direi. Por favor,
toque-me; é o que quero lhe dizer.
Mas coisas acontecem quando as pessoas me tocam. Coisas
estranhas. Coisas ruins.
Coisas mortas.
Não consigo me lembrar do calor de qualquer tipo de abraço. Meus
braços doem em virtude do inescapável gelo do isolamento. Minha
própria mãe não poderia me segurar nos braços. Meu pai não poderia
aquecer minhas mãos congeladas. Vivo em um mundo de nada.
Olá.
Mundo.
Você irá me esquecer.
Toque-toque.
O companheiro de cela se levanta em um pulo.
É hora do banho.