Charmosa eu de sempre,
Obrigada por ser tão eu! Obrigada pelos medos e pela ansiedade constante. Obrigada por pensar demais, analisar demais, sofrer demais, doar-se demais. Um dia você vai aprender a equilibrar tudo isso e entrar em erupção será apenas uma das escolhas, vai por mim. Obrigada pela inconstância mais constante que o mundo um dia recebeu. Obrigada pelos pensamentos confusos e as dúvidas mais ignóbeis, elas são a força motriz da sua alma.
Querida eu, não se assuste com essa carta ou com seu tom pujante de desnudamento, não se assuste por eu a conhecer tanto e tão bem. Eu sou você e esta carta é para nós. Ela serve para lembrar do que esquecemos e desvalorizamos diariamente: nós. Não, ela não será escrita em tom de autocomiseração, mas em tom de enaltecimento, de valorização de nós.
Querida eu, obrigada por me ouvir, por me locomover e por me apresentar o mundo. Obrigada, sobretudo, por me ajudar a enfrentar o mundo... a descobrir caminhos, chutar pedras, sulquear solos e erguer muros. Obrigada por caminhar comigo até o nada, encontrar ruas sem saída e voltar sempre ao início para seguir novo caminho.
Obrigada pela terceira teta menor que as demais, pelo úbere reduzido e pouco avantajado e pelos protuberantes vasculares que nele sorriem para o mundo. Obrigada pelo pelo ressecado, pelo casco danificado e pelas patas finas e desproporcionais. Obrigada pelas imperfeições que nos fazem únicas e singularmente atraentes. Nosso corpo nunca deve ser um problema, lembre-se sempre. Nosso corpo é produto da nossa inscrição no mundo... é nossa história mais viva e palpável, ao alcance do toque. Nenhum corpo é igual porque cada um apreende o mundo de uma forma, toca-o e por ele é tocado das maneiras mais distintas possíveis. Orgulhe-se, ame suas marcas, suas formas, sua composição.
Obrigada, também, pelo lombo selado, pela marrafa altiva, pelo chanfro afilado e pela mandíbula quadrangular angelicalmente esculpida. Agradeça por sua composição. Sempre. Agradeça por ser a vaca que somos. Perfeita!
Obrigada pelo olhar de quem enxerga o mundo com espanto e admiração a cada segundo, como se tudo fosse uma novidade. Obrigada pela essência risível, o apego aos amigos e a facilidade em alegrar os outros.
Obrigada pela força de vontade, o ânimo sonhador e a esperança vivificadora de acreditar que o melhor sempre vai acontecer. Não tenha medo de parecer boba, charmosa eu, tenha medo de não parecer você.
Não, não espero uma carta-resposta, só espero que tenha me ouvido e esteja me amando mais. Cuide da gente, por favor, e não tire de nós a oportunidade de se multifacetar em composições irresistíveis e igualmente apaixonantes. Que a cada dia possamos, enlouquecidamente, nos perder de amor por nós.
Ensandecidamente, amo-te, charmosa eu, de ontem, de hoje, de amanhã, de sempre.
Um cheiro dessa eu-vaca que para sempre será teu eu
Lia.
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Como queimar em silêncio?
General FictionSer humano limita apreender a vida. Enquanto atuamos performativamente, os animais simplesmente existem, selvagemente desempenham o único papel que a natureza lhes dotou: serem. Se eles são o coração selvagem da vida, suas palavras têm mais credibil...