Estimado Antônio,
Por que não me disseram que seria tão difícil, amigo? Por que não me disseram que crescer é desviar de imposições? Por que não me contaram que quanto mais tentamos caminhar sozinhos mais nos prendem e nos silenciam?
Como você sabe, meu pai quer que eu assuma o controle do rebanho de qualquer forma. O grande problema disso é que eu não quero. Mas ele não respeita minhas escolhas. Meus desejos parecem não importar para ele.
Fui criado sempre ciente de que a perseverança é minha maior qualidade, que não importa a altura da montanha, sempre a escalarei. Traçaram minha trajetória envolta no lençol da certeza, da confiança, da segurança. Fui sempre moldado para liderar, ser exemplo de força e, jamais, passar insegurança ou insinuar o mínimo ar de vulnerabilidade em uma decisão por mim tomada.
Mas e se de repente minha maior característica for a incerteza? Parece que meus pais esqueceram que não sou eles, que eles não podem me moldar como querem e que eu não sou apenas um objeto, tenho o direito de fazer escolhas e trilhar um caminho autônomo.
A grande verdade disso tudo é que os pais procuram fazer dos filhos versões aprimoradas de si. Parece que eles aproveitam a vida e a autonomia, escolhem, arcam com as consequências e vão aprendendo até envelhecer, período em que olham para a trajetória que viveram e, a partir dela, resolvem educar os filhos, tolhendo e moldando suas crias para não cometerem os mesmos erros que eles; ou pior, impõem como metas de vitória dos filhos ganhar aquilo que eles não tiveram capacidade de ganhar. Sinto que meu pai quer apenas me ver transformado em uma versão melhor dele mesmo. Não sei se por puro egocentrismo ou realmente amor por mim.
A questão é que eu não quero ser líder do rebanho. Não quero ser o bode líder, ou pior, ser sempre o filho do líder. Eu quero ser eu, mesmo que me ser ainda não me signifique nada. É tão abstrato e imprevisível ter de lidar comigo que tenho a certeza de que é esta a minha obrigação terrena. Conhecer-me, despir-me do que, sem questionamentos, foi-me imposto como minha subjetividade. Para os humanos, por exemplo, eu sou símbolo do demônio, da negatividade, do mal... enfim, não sou coisa boa e não mereço a companhia deles. Para minha família, eu sou exemplo de sagacidade, autoridade, poder e comando. Para mim, sou uma incógnita, longe de conhecer o enigma que sustenta sua existência na Terra. Por isso, só me resta ser eu. Experimentar com autonomia o contato como o mundo. Construir-me sob minha responsabilidade, única e exclusivamente.
E para isso vou precisar de sua ajuda, você que sempre me socorre. Preciso de sua ajuda para fugir disso tudo e seguir meu caminho, um caminho desconhecido sobre o qual só carrego a certeza de que será meu, exclusivamente meu. Preciso que me mande uma carta confirmando ou negando sua ajuda, pois pretendo fazer o seguinte: hospedar-me por aí uns dois dias no máximo e seguir caminho para o Sul. O destino ainda não sei ao certo, inclusive aceito sugestões. Fico um pouco reflexivo sobre tal atitude, mas não vejo outra solução — se você a tiver, serei grato também. A única certeza que tenho é a de que não posso ser o que meu pai quer que eu seja. Não posso ser um ele melhor. Não posso ser líder. Não posso ser referência se nem mesmo funciono como parâmetro para mim.
Eu preciso esgotar todas as possibilidades de ser eu, urgentemente. Conto com você para isso.
Antes que eu esqueça, como estão as estradas para o Sul? E como estão seus pais? Continuam com você ou já saíram para a temporada de verão no Norte?
Fico esperando carta sua. Saudades e ansiedade do
Ricardo.
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Como queimar em silêncio?
Ficção GeralSer humano limita apreender a vida. Enquanto atuamos performativamente, os animais simplesmente existem, selvagemente desempenham o único papel que a natureza lhes dotou: serem. Se eles são o coração selvagem da vida, suas palavras têm mais credibil...