O fim e o começo

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Seus olhos pareciam minúsculas cabeças de alfinete perdidas num mar azul. Seus cabelos, cascateando feito ouro líquido, escorriam por seus ombros. Uma fina mecha dourada agarrara-se entre seus lábios rosados quando se voltou para trás, girando nos calcanhares devido ao sobressalto.


Uma mão enluvada passou rente ao seu rosto, pálido sob o bronzeado dourado. Ela soltou um grito, assustada. A bandeja de apetrechos cirúrgicos que repousava sobre o carrinho poucos centímetros atrás de suas costas foi ao chão com um ruído quando nela esbarrou em sua efervecência descontrolada. As ferramentas brutas e frias se espalharam pelo piso, fugindo para todos os lados.


A expressão do homem era assustadora. Suas grossas sobrancelhas se uniam no vinco no meio da testa enrugada. Os olhos escuros faiscavam com algo sinistro e vil. A boca contorcida numa expressão grotesca fez com que um calafrio corresse a extensão de sua espinha. Ela mal conseguia respirar. A visão daquela face causava-lhe ânsia de vômito. Não por ser particularmente feia, mas o fervor de seus sentimentos mais cruéis transparecia em cada milímetro daquela pele parda que recobria seu rosto anguloso. Parecia nutrir um ódio mortal pela garota à sua frente.

Ele avançou na direção daquela silhueta pequena e frágil feito uma boneca de porcelana. Os pensamentos ricocheteando na mente. Ele tinha dez minutos. A visão era poesia para os olhos. Quase podia sentir o odor de seu pavor, misturado ao forte cheiro de químicos no ar. Se tivesse mais tempo, poderia saborear cada aspecto daquela interação com minúcia, regozijando-se a cada detalhe. Infelizmente, como na maioria dos casos, estava com os segundos contados.


Tropeçando em macas e carrinhos a enfermeira tentava manter-se fora do alcance das mãos que a perseguiam impiedosamente, procurando acertar-lhe. No início ele não fez muito esforço, divertindo-se com aquela brincadeira de gato e rato. O corpo dela tremia deliciosamente. Se apenas ele tivesse mais tempo...


A lâmina afiada do bisturi penetrou o uniforme branco. Rapidamente uma mancha vermelha se formou na região do tórax. O grito dela penetrou os ouvidos dele como uma melodia sensual, ainda que transbordando pânico e urgência. A garota deixou pender o corpo para o lado direito abraçando com força a região ferida. Grossas lágrimas deslizavam por suas bochechas coradas do esforço despendido em sua vã tentativa de fuga. Ela não tinha para onde ir, ambos sabiam. Vacilante, ela correu em direção à porta escancarada da câmara frigorífica. Ao alcançar a pesada porta de aço seus pés derraparam em uma poça de sangue. Horrorizada, arregalou os olhos ao se deparar com o corpo retalhado do assistente aos seus pés. Os olhos leitosos encaravam o nada, esbulhadados. A boca distendida em um grito mudo. O torso era uma massa indefinida e dilacerada, transbordando sangue escuro e espesso. Sentiu o estômago embrulhar.


A dor lancinante invadiu seu corpo quando o agressor cravou o bisturi em seu calcanhar esquerdo. Ele havia se dado ao trabalho de agachar-se para acerta-la bem ali, naquele ponto vulnerável. Enquanto ela se apressava em movimentos desordenados e exagerados, ele a conduzia por uma coreografia ensaiada e memorizada à perfeição. Seus movimentos calculados desdobrando-se diante dela com uma calma quase repulsiva. Ela soltou um grunhido choroso fitando os olhos pretos do homem à sua frente. As pupilas eram tão escuras que mal se podia distingui-las das írises. O que ela havia feito para merecer aquele ódio implacável?


Arrastando-se, ela seguiu para dentro da câmara, sabia que não tinha chance alguma contra aquele homem enorme. Não obstante, continuava a fugir enquanto ele caminhava lentamente em sua direção, tendo o cuidado de não pisar no rastro de sangue que marcava o assoalho claro da sala de autópsias.


O choro engasgado dela ecoava por todo o lugar. O olhar súplice da garota não parecia abalar os nervos do homem, que continuava a avançar a passos curtos e cerimoniosos. Ela engolia o ar em desespero. Seus pulmões convertiam o oxigênio em dióxido de carbono em um ritmo descompassado, provocando pontadas doloridas em suas costelas.


Ela escondeu o rosto entre as mãos ao delimitar a parede do fundo da câmara. As gavetas do freezer estavam abertas, exibindo os cadáveres em diferentes níveis de decomposição que repousavam naquelas bandejas de metal. Tudo parecia irreal e sem sentido. O coração batia descompassadamente ameaçando saltar do peito a todo instante.


- Por favor... – murmurou ela entre soluços – Por favor, não...


O homem soltou uma gargalhada desdenhosa. Ele adorava aquele momento. Fazia-o sentir-se poderoso e no controle. A excitação daquele poder submergiu seu corpo em uma onda de euforia extasiante. Os corpos aninhados em suas camas metálicas, pareciam ter se voltado para os dois, assistindo com fascinação àquela cena.


- Por favor... – gemeu ela mais uma vez, encolhendo-se.


Ele olhou para a garota esparramada no chão com mais atenção. Ainda podia dar-se ao luxo daquele pequeno prazer. Apesar das roupas amassadas, cabelos desgrenhados, olhos vermelhos e rosto manchado de lágrimas e sangue, era bonita. Usava um uniforme de enfermeira bem justo, que delineava seu corpo bem proporcionado. No cabelo uma presilha prateada pendia frouxa de uma mecha loura. Podia ver por baixo da saia do uniforme as meias brancas sete-oitavos que terminavam numa singela faixa de renda. Os sapatos eram brancos também e lembravam os que as bonecas de porcelana usavam. Não pôde evitar um sorriso. Se tivesse uma máquina fotográfica teria capturado aquela imagem perfeita. A beleza feminina aos prantos diante de si possuía um quê de romance que chacoalhava sua alma em espasmos de júbilo.


O homem enfiou a mão no bolso direito do sobretudo e tirou um maço de cigarros e um isqueiro prata. Sentando-se num pequeno banquinho com rodinhas, acendeu o cigarro sem tirar os olhos da garota que o fitava atordoada tentando raciocinar, mas simplesmente incapaz de fazê-lo. Se presumia corretamente, o cérebro sobrecarregado dela havia entrado em choque, alijando-a de qualquer pensamento racional. Aquele era o seu fim. Não havia nada mais que pudesse fazer. Ele soltou uma baforada no ar gelado da câmara, aquela imagem ficaria em sua memória por muito tempo. Até que uma nova viesse substituí-la.


Num gesto rápido e direto ele se debruçou sobre a jovem e passou o bisturi pelo pescoço dela, afastando-se para assistir enquanto a garota se contorcia no chão. Sons gorgolejantes e indefinidos saíam pela boca da garota. Ela parecia engasgar e soluçar enquanto o sangue jorrava, manchando piso, paredes e cadáveres. Ele tinha dois minutos para olhar a garota estrebuchando. Ela ainda se sacudiu por algum tempo até que perdeu os sentidos. A sensação de paz que o invadiu foi tão intensa que por uma fração de segundo ele sentiu-se incapaz de deixar o local. Mas logo sua racionalidade fria fez com que se levantasse do banquinho e abandonasse a cena, deixando para trás um pedaço imortal de si mesmo.

Morte na Sala de AutópsiasWhere stories live. Discover now