O muro

274 4 1
                                    

Não posso começar com fatos, não sei precisar a sequencia exata das descobertas,das sensações. Ninguém tem essa clareza naquele momento imprecioso dentro da adolescência em que a ordem natural das coisas desaba,o macio e quente da infância se esvaem, as verdades inquestionáveis se quebram em mil pedaços e nenhuma outra forma preenche ainda o branco que ficou em seu lugar.

Em que momento se começa a crecer ?

No espelho um esboço. Você brinca com a imagem e ensaia uma nova face, adivinha por tras dos traços o rosto que será seu um dia,mas ainda não o reconhece nessa hora estática,vazia,suspensa no ar.

Naquele ano aconteceram muitas coisas em nossas vidas,mas para nós sera sempre o amo em que fizemos a greve do amor.

E a primeira cena daquele ano,daquele verão de aguaceiros como tantos outros,a cena capturada é essa : o muro atrás do qual Álvaro se escondia. Há também a do espelho,mas o tempo agora mistura as duas em minha memória e,embora saiba qie a do muro aconteceu antes-a do espelho mais tarde,na noite do mesmo dia-eu as registrei superpostas,inseparáveis,confundidas.

No espelho, vejo o rosto que era meu com dezesseis anos e meio.Um a mais que a menina daquela história que eu achava barbara,O amante,da Marguerite Duras.Sem o charme do seu vestido de seda,dos sapatos de salto e do chapeu masculino,sem o homen elegante na limusine negra,a balsa cruzando o rio Mekong,sem o charme da indochina.Só o rosto bonitinho de uma menina comum,cabelos e olhos castanhos,que nunca saiu do Brasil nem viveu aventuras em países exóticos; que na verdade pouco conhecia alem de seu bairro,um bairro tambem comum de uma cidade comum como São paulo.

Mas examinei meus traços e me achei tão parecida com ela,queria tanto ter dito o que ela disse,que escrevi a frase com mão tremula no espelho esfumaçado do banheiro e fiquei olhoando meu rosto por trás das letras :"Muito cedo na minha vida ficou tarde demais".E chorei.Porque,alem de tudo,se todos na escola não tivesem lido o livro ou visto o filme(o professor de português obrigou),eu podia dizer que a frase era minha e mandala num cartão para o Álvaro,para ele saber o estrago que fez.podia ir ate um pouco adiante e copiar mais um trecho,"Meu rosto envelheceu e esse envelhecimento foi brutal.Sua matéria foi destruída.Tenho um rosto destruído".Nem isso dava.

O muro era alto e coberto de hera,com um portão quase da mesma altura,que rangeu levemente quando ele abriu uma fresta.eu já sabia que ele não tinha passado no vestibular.Desde cedo revirara a lista do jornal até de ponta-cabeça,conferira mil vezes,devia ser engano,o nome dele tinha de estar ali,Meu coração doeu tanto qie apaguei as mágoas e esqueci os pressentimentos, não pensei duas vezes pra correr ate a casa dele,de braços abertos,pronta para fazer aquilo que se faz quando alguem que você adora está sofrendo e não há nada que possa impedir:um abraço,um beijo,um carinho,não é tão grave assim,você só tem dezoito anós,vestibular é sorte,você tenta outra vez,ainda saem outras listas. . .

Gelei com o jeito duro dele,segurando firme o portão entre aberto,sem me convidar para entrar.

-- Ah!.... Oi, Ceres --disse,sem graça,num tom de tempestade prestes a desabar.--Eu precisava mesmo falar com você,ia te procurar.

Senti um frio na barriga,nao a via o menor clima para abraços ou consolo,ele estava me evitando desde antes do réveillon e agora eu ia ter certeza do que eu já sabia e não queria escultar.

Ele gaguejou,engoliu em ceco três vezes e desviou os olhos,sem coragem de me encarar.

--Não dá mais,Ceres.Não quero te magoar,você é a mais legal que existe,mas,desculpe,não dá.

Meu coração subiu para a boca e desceu aos pés,depois parou em algum ponto no percurso,o rosto ardia,a voz não sáia,foi um sufoco até conseguir,timidamente,perguntar:

-- você não gosta mais de mim?

--Não é isso...

--Entao gosta?E mesmo assim quer terminar?

--Huuummm....

--É por causa do... Alan.

--Do... vestibular?Já sei,você está triste,sem cabeça pra namoro.Por causa do Alan... E do vestibular--eu não perguntava,estava afirmando.

--Não é isso,já disse--repetiu,nervoso.--Não tem nada a ver com o Alan e nem com o vestibular.

Eu nao queria mencionar a última hipótese,mas ela saiu da minha boca:

--Então... você conheceu alguem.Está com outra,por isso não me quer mais --só dizer isso me doía tanto,que o coração parecia que ia estourar.

Ele me encarou com aquele jeito dele de maior abandonado,o olhar de derreter pedra,e parecia tão sincero quando jurou "Está louca?não tem nada de outra!Só não dá mais,Ceres não dá" ,que eu não sabia se pulava de felicidade e o atacava com montanhas de beijos,ou se prestava atenção naquela vozinha lá dentro,me cutucando. Então por que ele sumiu no réveillon? onde é que i a todo dia com o galinha do Ênio,aquele babaca que vivia contando vantagem de quantas já transou? o tempo todo se exibindo com o carro do pai,vive nao musculação,se acha o máximo,odeio o Ênio,não tem nada a ver com o Álvaro e de repente virou o melhor amigo dele,não se largam,desde que ele começou a sair com o Ênio nunca mais foi o mesmo pra mim...

Quando foi mesmo?Como aquilo começou?

Olhei para o muro e tive a impressão que o muro era ele, o Álvaro,das duas uma: ou virava discussão,ou o assunto morria. ele simplesmente não respondia.

--Na minha casa,no clube,em qualquer lugar.Aqui na rua não dá.faz tempo que você anda esquisito e eu nao entendo,preciso saber o que ouve,por favor,Al! -- implorei,me atirando no pescoço dele.

Ele me afastou como se eu tivesse algum tipo de doença contagiosa.

--Não tem nada pra conversa,Ceres.Acabou,dá pra você entender?é só isso acabou!

E foi estreitando a fresta do portão,ate fechalo de vez.

Fiquei muiro tempo ali de pé, do lado de fora,sem saber de arrombava o portão ou se batia nele para o Álvaro me deixar entrar.Mas não fiz uma coisa nem outra.Quando recuperei a capacidade de andar,comecei a me afastar devagarinho,sem conseguir desgrudar os olhos do muro,sentindo um súbito frio em pleno verão.

O ano em que fizemos greve de AMOROnde histórias criam vida. Descubra agora