Acordo, de novo afobada, mas já é manhã e tenho de me arrumar para o trabalho. Me devago mais um pouco na cama e, enfim, levanto. São seis horas em frente a um balcão de supermercado por uns 900 reais e tudo que puder levar do que está próximo a validade. Não é nem o salário ou a decadência de lidar com os clientes escrotos, são os outros privilegiados, não no sentido positivo ou negativo, os alienados do cotidiano. Privilegiados de todos os privilégios intangiveis e invisiveis que a míopia social disfarça e que a normalidade nos impede de afastarmos a cara para ver de forma distante o conjunto que justifica as peças.
Droga... Eu vou tomar meu remédio, é por isso que não posso enrolar na cama. Eu me visto, sempre de salto e batom, norma da empresa e do gozo dos clientes e gerentes.
Vou para a cozinha aonde o copo de ontem ainda me espera. Jogo o conteúdo na pia de alumínio e encho com água e coloco um gelo. Ergo os braços e tateando o topo do armário pego a caixa de remédios, um comprimido por um dia inteiro de ignorância.
Por ultimo a bolsa de sempre, uma ultima checada apenas pela mecânica de cada dia. Abro a porta e saio.