Capítulo 4

1 0 0
                                    

Ribatejo, 2016

A montanha pariu um rato. A melhor metáfora que encontrava para justificar a carta exagerada da mãe. Tudo estava calmo e sereno pela casa e pela propriedade à exceção de Dona Teresa permanecer a maior parte do tempo em repouso por causa da cirurgia, única alteração nas rotinas diárias da mãe.

Apenas as mensagens constantes de Jorge lhe tiravam a serenidade, mas em breve iria mudar de número de telefone e evitar que ele a massacrasse o dia inteiro.

Sara ali estava, sentada em frente da televisão, sempre com um sorriso na cara. Fez-lhe uma festa no cabelo e sentou-se a seu lado.

- Então Sara como vai o teu trabalho? Estás a gostar?

Marta não sabia o que perguntar à irmã ali sentada a seu lado e a adorá-la literalmente- a avaliar pelo olhar dela. Nunca foram muito chegadas e o facto de a mãe proteger tanto Sara, afastou-a, numa época em que ela tinha que decidir se continuava a trabalhar no hospital de Santarém, ou aceitava o emprego no hospital de Londres.

Sara sorriu e abanou a cabeça positivamente.

- Vai bem. Vendo muito pão. No próximo mês vou ser aumentada – disse Sara com a sua candura.

Sentia-se mal por não conhecer bem a única irmã que tinha, mas estava disposta a remediar a situação. Olhou para ela e lamentou o que lhe acontecera à nascença. Sara seria uma mulher resoluta se não fosse a sua limitação intelectual. Mesmo com as suas dificuldades, tornou-se uma mulher trabalhadora e responsável até onde as suas capacidades cognitivas lhe permitiam. Era Sara que tomava conta da mãe desde que esta saíra do hospital.

- Fico contente por ti. Sara...nunca fomos muito próximas, amigas mesmo, entendes? E lamento isso...

Sara acenou que sim com a cabeça, mais por hábito do que capacidade para entender todo o significado das palavras da irmã.

Marta achou-se uma péssima irmã. Sara era mais generosa do que ela.

- Mas se me deres uma oportunidade, queria conhecer-te melhor.

Sara abraçou a irmã espontaneamente com toda a falta de jeito que a sua deficiência lhe conferia.

- A mãe vai ficar cont'ente. Ela diz que tu f'oste para longe por minha c'ausa. – gaguejou.

- Não fui não. A mãe por vezes é injusta.

Marta sabia que era verdade. Tinha receio que a prendessem à casa e aos negócios da família, com o objetivo de cuidar da irmã, e nunca mais soubesse o que era o mundo fora da cidade de Santarém e dos seus arredores.

Teresa apareceu a arrastar os pés, devagar, como lhe recomendara o médico. Qualquer força despendida antes dos tecidos estarem cicatrizados era o suficiente para estragar a operação. Anos de esforço nos trabalhos das estufas a ajudar o pai depois que ele voltou do Ultramar, e uma filha parida aos trinta e sete anos, custaram-lhe o útero descaído e a fazer compressão sobre a bexiga. Restara-lhe apenas a opção da cirurgia com a promessa por parte do cirurgião que ficaria curada daquele mal-estar continuo.

- Olha quem aí vem! – Marta não conseguiu esconder o tom de censura e desapontamento com a mãe. – Sabes o que a Sara me estava a contar?

- Sei. Sara, não devias ter dito isso à tua irmã.

- Mas mãe! Tu disseste que não era segredo! – protestou Sara.

- Não é segredo filha, mas já passou tanto tempo, não devemos remexer em dores antigas.

Sara compreendia apenas a parte mais óbvia do discurso da mãe e, pelo tom de voz da mãe entendeu que fez asneira.

Quando Sara tinha quatro anos, numa consulta de pediatria, foi revelado que ela nunca seria uma rapariga independente. Sara tinha um atraso de desenvolvimento intelectual - assim lhes dissera o médico pediatra há quarenta anos - consequências de um parto difícil e demorado. Durante os primeiros anos, Teresa ainda teve esperança que o médico tivesse errado no diagnóstico, mas perto da entrada na escola, rendeu-se às evidências e, uns anos mais tarde, tinha Sara quase nove anos, chegou Marta, sem qualquer beliscadura. Teresa sentiu a sua dignidade como mãe e mulher recuperada ao pôr no mundo uma criança sem defeito. Amava as duas de forma diferente, mas Sara precisava mais dela, portanto, foi sem qualquer premeditação que se dedicou mais à primeira filha, não percebendo sequer que Marta se ressentia da falta de atenção da mão.

A Cápsula do TempoWhere stories live. Discover now