Capítulo 6

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Marta estava finalmente livre do emprego de Londres e isso já lhe valera umas quantas recriminações de Jorge e a promessa que viria pessoalmente buscá-la a Portugal para que ela voltasse ao hospital. Marta foi cordial, mas muito firme na resposta. Londres era um capítulo encerrado e eles os dois também.

- Jorge, não vale a pena perderes o teu tempo comigo. Já tomei as minhas decisões e não volto atrás.

- Marta! Marta! Não me podes fazer isso!

- Olha Jorge, nem tudo tem a ver contigo, o mundo não gira à tua volta, embora tu te consideres um deus. O que tu não admites é que eu possa decidir por mim sozinha. Não quero esse tipo de vida para mim. Esclarecido? Por mais necessidade que tenhas de controlar tudo à tua volta, a minha vontade e a minha consciência, são minhas apenas. Aceita isso de uma vez!

- Tens um namorado?

- Não tens nada que ver com isso e não vou responder-te. Quanto à Melissa, fica com ela, nunca reparaste, mas sou alérgica a gatos.

- Marta!

- Adeus Jorge. Sê feliz com a tua namorada paquistanesa, com a Melissa e esquece que eu existo. É um favor que me fazes.

Desligou a chamada e restringiu o número para que ele não voltasse a ligar-lhe. Com Jorge tinha que ser assim: cortar a comunicação de vez.

Subiu o Chiado devagar, divagando e observando as pessoas. Os rostos cansados, alguns alegres, outros enigmáticos, mas a maioria sem expressão e caminhando como se fossem formigas em carreiro. Recordou-se, por analogia, do poema do poeta António Gedeão «Luísa sobe a calçada» e, sentiu-se como essa Luísa, uma Luísa qualquer, a libertar-se da carga do seu mundo carregado de problemas. O movimento contínuo das pessoas a subirem e a descerem a rua era frenético. Àquela hora do dia todos apressavam o regresso a casa e ao quentinho das lareiras. O inverno chegara em força e, com ele o frio.

Hoje, especialmente hoje, depois da discussão com Jorge, apetecia-lhe um jantar diferente para se compensar, e lamentou não ter passado por um supermercado para comprar um queijo, pão e uma garrafa de vinho tinto para saborear dali a pouco junto à lareira. Ainda com o pensamento no seu casamento desastroso, ia vendo as montras decoradas com motivos natalícios e, um enorme queijo da serra da estrela chamou-lhe a atenção numa montra.

Ali estava algo que faria as suas delícias e que iria preencher um belo pedaço da frustração acumulada há pouco, e contribuir para lhe estragar a silhueta esguia.

Entrou na loja e ficou agradada com a decoração rustica que expunha produtos de primeira qualidade nas prateleiras. Vinhos, arroz, sementes, pão, enchidos, queijos e um sem número de iguarias que custavam os olhos da cara, mas faziam as delicias de quem tivesse bolsas recheadas de dinheiro. Marta olhava para a prateleira dos vinhos quando uma jovem de estatura média, cabelo escuro e olhos verdes, se aproximou dela. Sentiu um calafrio. Parecia ter visto um fantasma.

- Posso ajudá-la a escolher?

- Sim claro... balbuciou sem tirar os olhos da figura atraente da jovem, surpreendida com a semelhança entre ela e Maria. A sua amiga Maria a quem perdeu o rasto há muitos anos. Um mistério que ninguém se atreveu a desvendar naquela época. Maria desaparecera como por milagre da noite para o dia. Uns diziam que estava presa em casa por estar grávida de um desconhecido, outros que a mãe a tinha posto num colégio interno e outros ainda que o pai a tinha matado à pancada e enterrado na areia do rio para não ser preso. Houve quem vasculhasse o leito do rio em busca de um cadáver que nunca encontraram e, várias vezes foram avistadas velas acesas atarraxadas em cima de cortiças a boiar no rio para encontrarem o corpo afogado. Rezava a crença, na boca das gentes do povoado, que a cortiça parava no sítio onde o corpo estivesse. A província era cheia de histórias do folclore cultural.

A Cápsula do TempoWhere stories live. Discover now