Copos, cerveja, chapéus e vozes - tudo voou pelos ares: A mulher mais cobiçada da cidade anunciou que se casaria! Porém, com uma condição um tanto peculiar: sua mão seria somente da pessoa que abrisse sua porta da frente com a chave pendurada no pescoço de seu gato, e não havia regras para consegui-la!
Gritarias e discussões entre mais uma rodada de cerveja tornaram aquilo uma imediata competição, do mais pobre ao mais rico, de cavaleiro a vendedor de feira, todos impulsionados pela mesma cobiça. Houve quem se levantou no mesmo momento, com uma desculpa esfarrapada para sair na frente dos outros, e houve quem ficou, bebendo sua cerveja com a confiança de que seria o mais esperto a apanhar o gato.
Mas no final, como se tivessem dado a confirmação de que o paraíso existia para aquele que o encontrasse primeiro, estavam todos aqueles homens já levados à loucura, forjando os mais absurdos planos e estratégias para caçar o gato, atraí-lo de qualquer forma possível e até matá-lo para conseguir a chave.
Criaram-se armadilhas, usaram cães de caça, tentaram atrair o gato com ervas e ratos. Uma caçada voraz começou atrás do pobre animal, mas a inteligência de todos os homens juntos não somava a inteligência e esperteza do gato. Não importando a situação ou a mirabolância das armadilhas, sempre escapava sem deixar rastro.
“Não matem o pobre animal.” Disse um dia a irmã do garçom, mas foi calada com estrondosas gargalhadas, e para mais um dia os homens deixaram a taverna armados atrás do gato. E assim foi o jovem garçom ao fim de seu expediente, mas a irmã agarrou-lhe a manga e suplicou:
“Meu irmão, não mate o siamês! Pense com o coração, não com a força!”
“É apenas um gato.” Este respondeu, mas o olhar da irmã não o deixou partir, e um sentimento de culpa tomou-lhe o peito quando ela disse antes de deixá-lo:
“E você é apenas um homem. O que o torna melhor que o animal? O que o torna diferente de todos aqueles homens brutos para ser digno da mão da donzela?”
E com isso partiu. Deixado em seus devaneios, a dúvida dividiu o garçom, de ir caçar ao gato assim como todos os outros, ou apenas deixar aquilo e voltar para casa com a consciência leve de deixar em paz a pequena e inocente alma do siamês, que daquela situação não tinha culpa nenhuma. Por um lado, talvez sua destreza o levasse a conseguir o animal e então a mão da mulher que desejava, e por outro, de que adiantava machucar o bichano se no final a recompensa seria superficial, e o jovem garçom teria sua mão, mas não seu coração?
Gritos interromperam os pensamentos do homem, e passadas agressivas movimentaram a rua:
“Ele está por ali!”
“Peguem-no!”
Um rosto barbado, corado pela bebida, convidou o jovem garçom a se juntar logo à caçada, já metendo-lhe a mão no braço e continuando seu percurso atrás dos outros, mal se conseguindo sustentar nas próprias pernas com a vertigem do álcool.
Um cavaleiro havia apanhado o gato, e a pequena besta se debatia e gritava em suas mãos, enquanto os olhares já melancólicos observavam-no se aproximar da chave. Mas de repente, um chiado raivoso e um grunhido de dor devolveram o ânimo às suas expressões gananciosas: o siamês se lançou de volta ao chão, enquanto vívidas gotas vermelhas manchavam as vestes do cavaleiro!
O caos se espalhou pelas ruas da pequena cidade quando a caçada recomeçou, o gato à frente com a cruzada de homens bêbados em seu encalço, e as palavras da irmã começavam a voltar para a cabeça do garçom. Quando alcançou-os, uma confusão de mãos e gritos já havia começado outra vez, num beco sem saída o gato estava preso em suas garras novamente, e pareciam prestes a rasgá-lo no meio, quando uma loucura lhe veio à cabeça..
Nuvens de trigo se levantaram quando os sacos cuidadosamente empilhados ali foram empurrados pelo garçom, e na completa confusão gato e chave foram parar em direções opostas!
Os homens, cegos de ambição, viram apenas o gato, e antes que se desse conta, o jovem garçom lançara-se na frente dos homens para que o siamês fugisse, e o animal se enfiou no buraco mais próximo. Quando a poeira baixou e a multidão abandonou o beco, pôs-se a procurá-lo preocupado, e como se o esperasse, achou o bichano a tomar sol no telhado da taverna vazia.
O siamês espreguiçou-se e desceu até o rapaz, que observou-o em silêncio reflexivo.
“É, bichano. Desejei a chave e acabei por conseguir o seu dono.”
Mas apesar da decepção do fracasso, um alívio lhe dominava o peito de ter tirado o animal da selvageria daqueles homens, e o gato lhe parecia igualmente grato. Mas havia um algo a mais naqueles olhos azuis que fez o garçom agachar-se a observá-los de perto, e foi quando uma sensação de vertigem invadiu-o e em questão de instantes olhava para o rosto moreno e belo de uma moça, cujos olhos siameses prendiam-no em suas íris azuis.
“O que.. Aconteceu? O que é.. Você?”
“Obrigada por me salvar… Eu sou um metamorfo.” o sorriso da moça e a sincera gratidão em sua voz fez o garçom sentir um calor lhe subir o rosto corando. “Eu sou o gato e a chave.”
E naquele momento lhe veio à mente o sentido de tudo aquilo. O segredo nunca fora caçar o gato com o único intuito de ter a chave em seu pescoço, mas sim conquistar sua confiança ao merecê-la, ser digno do afeto inocente do animal. A chave para o coração daquela mulher era mostrar ser capaz de sentir por um pequeno gato o mesmo que por um ser humano.
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Conto - A Chave Para o Coração
ContoUma pequena narrativa, inicialmente criada pra um projeto de escola, sobre amor e empatia.