medo do escuro

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Acordar todos os dias de supetão as sete da manhã acabara tornando-se uma rotina indesejada para o pintor Alex Borges. Abrir as cortinas e a janela, deixando os raios solares entrarem e penetrarem seus olhos, como uma chave abre uma fechadura, era o momento crucial de seu dia. o que havia se tornado rotineiro também, era ver da sacada de seu quarto o seu animal de estimação perdido na calçada ainda fria de início da manhã - e de certa forma tornara-se crucial isso também visto que era seu combustível para a manhã: levantar, vestir-se, tomar um copo d'agua e buscar a sua gata Marie lá embaixo. desde o mês passado, quando ela fugira por certo tempo e fora encontrada com o rabo quebrado e alguns ferimentos, ela fora proibida de sair, tanto por ele quanto pelo veterinário, esse que sobretudo teve a decisão de amputar o rabo dela. Marie era então uma gata, com o rabo amputado, proibida de sair de casa, e mesmo assim na calçada de sua rua as sete da manhã sabendo-se lá onde passará a madrugada. Marie era acima de tudo destemida.

Sendo assim o magro e alto pintor levantou e buscou dentre todas a confusões de sua mesa a chave da casa. passou a mão derrubando quase tudo que havia: suas tintas acrílicas em bisnagas, seus pinceis, seu lápis favorito, e seu cachimbo -- algo que o trouxe lembranças da noite passada e de quase todas as últimas noites, quando se entope de maconha e morfina até apagar, acordando apenas noutro dia (exatamente como acontecera hoje) -- por fim encontrou a chave ao lado do seu celular: 31 mensagens não lidas dizia o visor trincado. "vou me incomodar com isso depois... depois eu leio esses inoportunos..." pensava ele enquanto vestia a calça de moletom e se dirigia a cozinha buscar água.

Da janela da cozinha podia ver a rua e lá na calçada estava Marie. Um ônibus passou rasgando o asfalto e crianças nos bancos de trás apontavam para algo mais a frente, Alex se esforçou para ver e havia um mendigo vomitando em um lixeiro. O tipo de coisa que costuma animar crianças e fazia ele refletir. O dia estava bonito e um sol despontava por entre as nuvens, e mesmo assim havia um cara as sete da manhã vomitando em uma lixeira, para ele claramente era o yin yang: se houvesse algo de bom, teria algo de ruim. O seu bom era o mendigo não estar vomitando em sua gata. e sua gata? quando ele voltou a procurá-la já não a encontrou mais. Ela havia desaparecido. e ele se martirizou por ter a perdido de vista, agora o restava descer e torcer por ela atender seus incansáveis "psipsipsi".

Antes de descer lembrou-se de checar o sótão, assim pegou sua lanterna e fora até lá. O sótão era o local onde Marie fora encontrada com ferimentos e o rabo quebrado. Ela estava em um canto escuro onde o telhado terminava. Foi tão difícil encontra-la quanto é difícil para Alex ficar um dia sem fugir da realidade. Ele gargalhou com a ideia e lembrou-se de seu cachimbo. Enfim, o sótão ficava subindo uma escada de 10 degraus ao lado da porta de entrada, seria um segundo andar se o chão não fosse de cimento batido, e mais os fatos de o teto ir diminuindo exponencialmente de tamanho (como um quarto de baixo de uma escada), e as telhas terem alguns buracos, e a estrutura ser de madeiras velhas e claro as incontáveis teias de aranhas.

Quando entrou no sótão a escuridão era tanta que nem mesmo a luz que entrava da porta aberta iluminava os cantos. Assim Alex acendeu a lanterna e deu uma olhada em volta: algumas madeiras jogadas, tijolos de obras passadas, um troféu coberto de teias de aranha "campeão copa futsal 1984" ele pode ler, e nada de uma gata sem rabo. Com a rinite batendo a sua porta, ele se virou para ir embora, porém fora travado por um barulho de coisas caindo atrás de si. Virou-se imediatamente e iluminou, havia algo correndo no canto mais baixo, onde o telhado e a parede viravam um só, havia uma forma gorda e rápida, e estava se aproximando, mas ele não conseguia definir o que era, a luz de sua lanterna era fraca (malditas compras de 1,99, por que ser um mesquinho mão de vaca?) e o barulho aumentava a cada instante tac-tac-tac, e ele começou a sentir um palpitar forte e reparou em sua boca seca, seu braço esquerdo começava a formigar, e quando ele achou que iria ter um ataque cardíaco, a bola gorda passou correndo por cima de seu pé e saiu imergindo porta afora. Era um camundongo gigante, gordo e nojento, que provavelmente não via a luz a tempos. Aquele sótão escondia algo, e ninguém queria ficar por lá.

Alex logo saiu também. Trancou a porta e desceu os degraus. parou para respirar e se acalmar. o que ele não daria agora por uma dose de morfina? respirou, respirou, respirou, aprendera com livros budistas a se acalmar, só não conseguia largar os vícios. Tinha de continuar procurando Marie, desde que seu rabo fora quebrado, e ela encontrada definhando no sótão nunca mais fora a mesma. Aquele maldito lugar escondia algo. Alex voltou a si e desceu até a rua para procurar a gata. O sol queimava em cima dele, já devia ser meio-dia, ou algo assim, por deus quanto tempo ele ficara se acalmando, respirando na beira da escada tentando não pensar no sótão e desejando estar chapado? o calor vindo da brecha das nuvens aquecia suas ideias, e logo seus pensamentos começaram a trabalhar. Ele devia procurar Marie, mas o medo que o sótão o causou deixava ele querendo procurar uma dose, isso sim. No fim, a morfina e as drogas eram o seu sótão. Onde ele se refugiava quando estava com medo, como a gata. Onde ele pacientemente esperava, ou então acelerava, sua morte. E suas pinturas, suas telas gigantescas surrealistas, seus desenhos inacabados tudo isso eram como o troféu esquecido no sótão. Estavam com ele esperando a morte, mas os seus valores de nada significavam. Estavam todos cobertos de teias de aranha perdidos na escuridão.

Deixando de lado os pensamentos que o atormentavam deu uma olhada agora pela calçada. O mendigo que vomitava anteriormente estava deitado em um canto, e carros estacionados bloqueavam a vista do outro lado da rua. Alex precisando vasculhar, se agachou, e como se brincasse de esconde-esconde com a gata deu uma olhada de baixo dos carros, procurando talvez suas patas, o rabo que não seria. nada, nada e nada. optou por seguir andando na rua, e chegando próximo do mendigo, Alex percebeu que o mesmo o fitava curioso. "Procurando por algo?" perguntou ele. "Uma gata" respondeu Alex reparando na camiseta vomitada do mendigo. "Que cor?" retrucou ele "preta com branco. Não tem rabo" "não tem rabo?" "é" "bom, não vi, mas gato é assim, logo volta" disse ele por fim e vomitou um jorro amarelado a seu lado. Alex sem entender nada agradeceu ao mendigo e saiu. O vômito foi como uma torrente passando pelos seus pensamentos e levando os tormentos. Ele podia estar muito chapado quando fora ao Dr. Couto, o veterinário, para buscar a gata pós amputação, mas agora pode lembrar de suas palavras naquele dia "se por acaso ela vir a fugir de novo, o que é da natureza dos gatos, deixe uma lata de atum por perto e aberta. Em horas ela volta. Pode acreditar!", o que ele não havia dito apenas era que se ela fugisse de novo, iria se esconder em cantos escuros, em sótãos com camundongos gordos, ou qualquer outro lugar onde a escuridão reine e a morte seja o mordomo.

Alex então subiu de volta, foi até o armário e procurou pela lata de atum. Tirou-a de seu canto escuro e abriu-a deixando no canto de fora da porta de casa. Voltou para dentro e acendeu um cigarro de maconha. A tarde começava a correr e os ponteiros do seu relógio indicavam que seu tempo seria perdido. Logo ele arrumou a primeira dose de morfina do dia, depois a segunda, depois a terceira.... durante a noite sonhou que garras arranhavam desesperadamente uma porta, mas ele não as via, apenas escutava. Na manhã seguinte, Alex não abriu as cortinas.

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⏰ Última atualização: Aug 19, 2019 ⏰

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