Prólogo

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Clara

Tudo era escuro. Vozes ecoam pela minha cabeça como em uma caverna. Sinto um aperto muito grande no peito e uma imensa vontade de sair de onde estou, apesar de não estar em lugar nenhum, em um vazio imenso de agonia. As vozes aumentam seus volumes já altos, e de repente, um estrondo enorme.

Estava dormindo. Acho que acordei.

Ele acabara de entrar pela porta, a empurrando com tamanha força, que as paredes pareciam estremecer. Chorando, joga-se em sua cama, que fica ao lado da minha. Demoro alguns segundos para processar o que está acontecendo. Eu nunca o vi chorando daquele jeito. Nunca tinha visto uma lágrima sequer sair daqueles pequenos olhos castanhos. Sempre via sorriso em seu rosto, e brincadeiras à toa. Mas aqueles soluços estavam acontecendo, o que me deixou bastante preocupada.

Sentei ao seu lado. Ele ainda estava de bruços, cobrindo o rosto, como se não quisesse que ninguém no mundo o visse assim. Talvez ele não quisera. Não sabia o que fazer, então comecei a passear minha mão em seus cachos, que insistiam em retornar ao seu lugar. Passei um certo tempo acariciando sua cabeça, tentando digerir tudo, e pensar em uma saída. Se é que teria alguma saída. Eu já sabia o que poderia ter acontecido. Sempre temi algum dia como esse, mas não esperava que fosse hoje. Logo hoje.

Joe me ligara mais cedo, com a voz trêmula. Seu pequeno relacionamento teria chegado ao fim, depois de tanta confusão entre os dois. Talvez não era pra ter acontecido. Eles eram diferentes um do outro. Mas isso não era o real motivo. A verdade era que eles não se amavam. O menos triste é que agora ele não estava mais preso a alguém por um tempo. Toda vez que ele se prendeu a alguém, se machucou.

A contar pelos gritos que ouvi, a única coisa que passou pela minha cabeça foi que nossos pais descobriram tudo. Acredito que isso é assunto pra se conversar com calma, mas calma é algo que eles não têm. Era de se esperar uma cena dessas.

Acontece que os relacionamentos de Joe sempre teve algo em especial, que fazia com que todos o olhassem com desdém, tristeza, e até raiva. Eram todos garotos. Sempre o acompanhei em qualquer parte de sua vida, e sempre soube disso. Sempre vi que seu estilo de vida não agradava muito, por mais que sua vida não interessasse a outras pessoas.

Percebo que Joe está dormindo do mesmo jeito que o encontrei. Ainda são nove horas. A janela do quarto mostra uma feroz noite lá fora. Tão feroz quanto o sentimento que envolve toda a casa, desde a angústia dele, quanto a raiva deles, dos nossos pais. É hora de dormir e já estou cansada. De novo.
Tento esquecer o que está acontecendo por um instante, e me vejo deitada novamente, recuperando um sono inacabado, agora com um pouco mais de frio. Um pouco mais de tristeza. Um pouco mais de aperto. Até que tudo ao meu redor começa a rodar levemente, e o quarto virar um enorme vazio silencioso.

***

Todo dia, pela manhã, antes de acordar, ouço as vozes de todos pela casa. As vezes é alguma notícia interessante que meu pai vê pelo celular, já que ele adora ler jornais, e depois que descobriu que pode fazer isso pelo seu aparelho, não conseguiu mais parar. As vezes minha mãe conta alguma coisa que aconteceu, alguma fofoca, ou simplesmente qualquer coisa. Ela adora falar. Junto com isso, os risos do meu irmão. Ele ri de quase tudo. Quase tudo. Muitas vezes se mantém sério e atento às notícias, às fofocas. Mas hoje não ouvi um ruído sequer. Seria estranho se minha mente vagamente lenta não lembrasse do que havia acontecido ontem, e da incerteza do que pode acontecer hoje, ou nos próximos dias.

Viro-me para conferir se Joe está bem, se está dormindo ainda. Apesar de que ele sempre acorda cedo - inclusive aos sábados - não seria de se estranhar que ainda estivesse dormindo, já que tudo poderia estar pesando em sua cabeça. Para minha surpresa ele não está lá. A cama completamente arrumada e nenhum rastro dele. Levanto um pouco sonolenta, caminho em direção ao banheiro. Ao fim do corredor vejo meus pais à mesa em silêncio. Mamãe, que está de frente me olha com os olhos vazios e sem cor. Continuo a andar e vejo que Joe não está no banheiro, nem na sala, e nem em lugar algum de casa.

Depois de um banho, tento lembrar dos lugares que ele poderia estar. Sou um pouco ruim com lembranças, mas sei de um lugar que ele adorava ir antes de entrar na faculdade, antes de ficar quase sem tempo pra nada. Meus pais ainda à mesa, tomando café apenas me acompanham com os olhos, quando saio pela porta sem sequer dizer uma palavra, ou comer algo.

***

Ao entrar pelo enorme portão de ferro do parque, caminho pela calçada de pedra, tentando me equilibrar ao pisar nos vãos entre uma pedra e outra. É difícil para quem ainda está com sono. Ao fim da calçada é visível uma grande escada que desce alguns degraus para baixo do nível do chão, duas grandes árvores ao entorno, trazendo tamanha sombra ao lugar, e uma estátua de uma mulher vestida com um véu aparentemente fino - apesar de ser de pedra - e uma brisa suave que invade todo o lugar. Sentado em um dos degraus da escada está ele, com a cabeça baixa, os ombros caídos. Cena que me destrói por dentro. Mas não posso demonstrar isso pra ele, tenho que ser forte e ajudá-lo nesse momento difícil.

Sento ao lado dele, que se assusta um pouco com a minha presença, mas volta o olhar para o chão, onde estava antes. Passo o braço em volta do seu ombro e o deixo lá. Na minha cabeça não passam tantas coisas. Não tanto quanto deve estar passando na dele. O silêncio e o canto dos pássaros falam por nós dois. Apenas queremos que tudo isso passe. Apenas queremos que tudo fique bem. Tudo vai ficar bem.

(Im)perfeitosOnde histórias criam vida. Descubra agora