Quem sou eu?

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Muitas vezes ser ignorado pelas pessoas que você nunca achou que seria, se torna um tanto constrangedor, já que geralmente temos muito pra contar, coisas do dia a dia, fatos que ocorreram. Eu não contei para eles que consegui um estágio na faculdade, que a partir de segunda iria passar o dia todo fora. Sendo sincero, eu ainda não estou com vontade de falar. Quero ver até onde vai durar isso. Se por acaso eles falarem comigo antes de segunda, eu penso em contar. Uma gota de água vai escorregando o vidro do box do banheiro, correndo lentamente em direção ao chão, para se juntar às outras gotas, que agora não são mais gotas, e sim um pequeno córrego formado no chão de lajotas brancas, indo em direção à um único ponto. Ouço um tilintar de talheres distante, quase imperceptível, mas que me distrai dos meus devaneios.

Parece que alguém já está comendo.

Por um momento eu sinto um arrepio. Parece que o frio da água que cai do chuveiro se juntou com a angústia, também fria. Todo café do sábado era formado por nós quatro, e quando um demorava, os outros esperavam. Parece que não mais. De repente uma solidão toma conta de toda a minha cabeça e do meu coração. Sem pensar em nada me desvencilho desse banho gélido, e procuro qualquer coisa para me distrair. De novo. Agora a distração é a minha companhia.

Pego o celular, na mesinha de cabeceira da cama, e vejo que tem mensagens não lidas.

Tony.

"Bom dia. Como está?"

Dou um sorriso. Logo vejo que tem mensagens de outras pessoas, fazendo a mesma pergunta. Beto, Jenifer e Jessy. Tony havia dado realmente meu número para o grupo. Salvei todos rapidamente, antes que meu estômago voltasse a falar, e a doer repentinamente. Há um ano havia descoberto uma gastrite, já havia feito o tratamento, mas ainda sentia algumas vezes dores, quando passava da hora de comer. E era o que estava prestes a acontecer agora.

Corri para a cozinha, e, ao passar a vista pela mesa, não encontrei os três. Só o que sobrou de pão, café, leite, manteiga. Clara estava sentada no sofá, dava pra ver seus pés sobre os braços do sofá, ao fim do corredor. Preparei um pão, e subi para o quarto.

"Oi, Tony. Bom dia. Estou bem, sim, e você?"

Ignorei as outras mensagens. Dei uma mordida no pão, que por sinal estava muito bom, a não ser que fosse fome. O celular vibra, e vejo que Tony não demorou muito a responder.

"Estou bem. Na verdade eu estou com fome... hahaha. Mas estou bem."
"Que coincidência! Eu acabei de comer um pão"

Nossa, que idiota!

***

A noite se estende, lenta e quente. Nesta época do ano as noites costumavam ferver. Os últimos raios de sol se lançam sobre o espelho da parede como um raio laser, e aos poucos se dissipando em maio às árvores que ficam ao final da rua da minha casa. A conversa por mensagem durou o dia inteirinho. Quase não faltou assunto. Tony mora com a mãe e um casal de tios. Seus pais separados, e sua rotina em casa um tanto pacata. Depois de contar como estou, após toda a discussão que tive com os meus pais, me senti mais aliviado em ter confiado isso a alguém. Por mais que minha vida íntima já não seja tão secreta como era, me sentir melhor por ter de fato contado isso a alguém, e, por algum motivo que não sei, feliz por esse alguém ter sido Tony. Ele soube me escutar - ou melhor, ler minhas mensagens - e me aconselhar de uma forma que jamais alguém já havia feito.

Clara apenas passa pela quinta fez pela porta do quarto. Ela estava trabalhando em uma pequena plantação que havia começado semana passada, quando ganhou sementes de algumas flores de um amigo. Ela sempre gostou, mas nunca teve disposição pra continuar. Ela me olha rapidamente e me fuzila, como se estivesse pensando em me interrogar mais tarde. De fato ela ia. Mas por enquanto, só atravessava seu olhar pela porta, direto aos meus, cemicerrados.

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⏰ Última atualização: Oct 30, 2019 ⏰

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