Um dia após o outro

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O vai e vem entediante não pára, mas não me distrai. Desde que eu me conheço, me distraio com facilidade, até mesmo com o balançar de um ônibus, com as vozes das pessoas falando aleatoriamente assuntos distintos, uma senhora que acabara de sentar em uma cadeira cedida por um rapaz simpático, uma mulher que contou sobre uma receita ótima que cura gastrite, e tivera aprendido com sua tia avó, um moço que estava tão concentrado ouvindo uma música aparentemente boa. Mas hoje nada me distrai. Eu acho. Tudo é tão barulhento e agitado que é difícil permanecer atento em apenas um lugar. Volto meu olhar para fora do ônibus, tentando pensar um pouco na minha vida, e em toda a briga que aconteceu há alguns dias. Há exatos sete dias.

Logo as lembranças ocupam espaço em minha mente, deixando todo o ônibus, e suas pequenas histórias de lado. Depois que terminei um namoro de dois meses com David, ele fez questão de mostrar para todos que eu era um babaca. Não sei se babaca seria a palavra certa para descrever a minha pessoa, mas as palavras não podem voltar para a boca depois que saem. A partir de então eu fiquei conhecido como babaca diante de todos os seus amigos, que também eram meus. Eram. David fez um vídeo e publicou em um dos seus stories no Instagram que eu não tinha sentimentos, somente pelo fato de que eu não quis mais continuar o namoro. Algo me fez pensar que estaria vivendo uma mentira. Já estava tudo tão frio, e me consumindo. Me fez pensar que não era o que eu queria pra mim, e enganar meus sentimentos é algo que não sei fazer.

Acontece que o vídeo chegou aos ouvidos do meu pai, e então tudo veio a tona. Tudo veio a tona da pior maneira possível.

Ao chegar em casa, cansado pelo dia exaustivo, encontro os dois ao redor da mesa, seus olhares eram de tristeza, e ao mesmo tempo de raiva, como se alguma coisa terrivelmente revoltante tivesse acontecido. Eu ainda tentei perguntar o por quê dessas caras fechadas, tentando não imaginar o pior. Porém o pior já estava acontecendo antes mesmo que eu pudesse evitar. Uma enxurrada de palavras mal ditas e desconfortáveis invadiu toda a casa como uma avalanche, causando um estrago irreparável a quem estivesse perto. Apenas em dez minutos eu me transformei, do garoto alegre e brincalhão, na pior decepção em forma de pessoa já existente. As palavras eram cruéis. Diziam que eu estava os matando, que eles iriam morrer de desgosto por minha causa. E o pior: que se eu quisesse seguir esse caminho, que fosse bem longe deles. Meu mundo havia caído ali naquele lugar. E de lá, provavelmente não iria se levantar tão cedo.

Depois que dormi no colo de Clara, acordei no meio da noite, ainda desnorteado, não sabia o que ainda estava fazendo ali. Talvez devesse ir embora. Talvez toda aquela raiva iria passa. Será? Peguei algumas coisas e coloquei na mochila. E o tempo que tive foi somente para arrumar minha cama e abrir a janela e sair no meio de um breu. No meu relógio de pulso ainda eram quatro e meia. Tinha um caminho longo. Mas não sabia para onde iria àquela hora. Quem sabe eu nem queria sair de casa, era só pra tentar arrumar a mente e colocar a cabeça no lugar. Sozinho. Assim que o parque abriu, às seis, depois de uma longa caminhada, finalmente cheguei onde queria. Andei o mais rápido possível, quase despercebendo o piso irregular de pedras debaixo de mim. E somente sentei em um dos degraus de uma escada oval no meio do parque. Ali estava seguro. Ali estava sozinho. No lugar em que costumávamos frequentar na minha infância, como uma família feliz que provavelmente estaria destruída, talvez por minha causa. Ou por causa do destino.

***

Ouço alguém chamar meu nome, no corredor da minha sala. Era Beth, minha amiga mais próxima e colega de classe.
_ Por favor, diz que estudou para a apresentação. _ Disse de modo comovente, como quem estivesse desesperado.

"Que apresentação?" Meu cérebro havia perguntado pra mim mesmo, esperando que eu soubesse alguma resposta. Logo lembrei que realmente havia uma atividade de seminário marcada para hoje, mas minha cabeça andava tão distraída, que simplesmente esqueci.

_ Claro que estudei! _ afirmei, também desesperado _ Mas preciso estudar só mais um pouquinho, porque esqueci de alguns termos. _ cocei minha nuca, para me ajudar a pensar em como iria sair dessa saia justa em que minha mente havia me metido. _ Te encontro em dez minutos na sala.
_ Tá bom, Joe. Mas não demora. _ ela me olhou com ar de desconfiança, cemicerrando os olhos. _ espero que tenha realmente estudado.

Sorri e virei as costas rapidamente para chegar o mais rápido possível na biblioteca que fica próximo do bloco I, o qual eu estudo.

Ao chegar na biblioteca, logo vejo Jessy, outra colega de classe, junto de umas pessoas que eu não conheço. Eu me aproximo da mesa que eles estão e pergunto se posso ficar um tempo com eles.

_ Você também não estudou? _ Jessy disse, em meio a risos.
_ Minha vida tá meio doida, não lembrei disso.
_ Senta aqui. Ninguém aqui estudou pra nada, se junta ao bando.

Eu ri pelo nariz e sentei ao seu lado, e logo percebi que ninguém estava me notando, todos concentrados nas suas leituras. Exceto um rapaz do outro lado da mesa, que me lançou um meio sorriso, e abaixou a cabeça. Eu abaixei a minha e me afundei em teorias da administração, que eu deveria já saber. Sorri de nervoso.

Após alguns curtos minutos, insuficientes para eu dominar o assunto, Jessy levanta e sussurra em meu ouvido que já vão começar as apresentações.
_Já vou. Só vou terminar esse capítulo. _ afirmo.
_Está bem! E a propósito... esses são Jenifer, Beto, e Tony _ apontou para cada um deles, que sorriram, e logo me cumprimentaram.
_Acho que estamos atrasados _ Disse Jenifer, para os demais. _ Te vejo por aí, Joe.
_Até mais, gente _ falei ao grupo.
_Tchau. _ Tony, que havia sorrido pra mim, mais cedo, pegou em meu ombro e se despediu, sorrindo do mesmo jeito. Sorri de volta.

Era de se notar que Tony era muito bonito. Bonito demais pra notar alguém como eu. Sou apenas um magricelo desastrado. Acho que ele está sendo gentil em sorrir assim pra mim. Balancei a cabeça para afastar essa ideia da minha cabeça, fechei o livro e saí para uma apresentação possivelmente frustrante. Boa sorte, Joe.

(Im)perfeitosOnde histórias criam vida. Descubra agora