Começo- capítulo 1

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Há um tempo,
Na verdade há muito tempo em que penso como seria se não tivesse te conhecido, se não tivesse te respondido, se não tivesse mostrado interesse, se não tivesse confiado em ti, em tua família, em tua caridade, em teu rosto que me passa sinceridade, ainda que saiba hoje o que essa sinceridade significa.
E se, e se tivesse me livrado de você na primeira oportunidade...

* * *

As lembranças foram as únicas coisas que me sobraram, as falsas lembranças principalmente, reconstituo memórias que nunca existiram, edito, decoro, remonto ao meu gosto, finalizo e apresento para meu ego, apenas ele me faz levantar e viver mais um dia, dia esse que desejo mais uma vez que seja o último.

Antes desejava para minha vida sucesso, dinheiro, uma família perfeita, uma casa para receber meus amigos e poder mostrar meu novo imã de geladeira vindo direto da Europa que adquiri em minha última viagem de luxo com meu marido alto e inteligente; nesse exato momento eu apenas desejo saber em que ano estamos. Chegar a este questionamento me faz rir, um riso espontâneo, premeditado de raiva, as gargalhadas vêm como uma ânsia incontrolável, os Pacientes ao meu lado já devem estar acostumados as minhas loucuras noturnas, tem noites que algumas risadas acompanham a minha formando uma sinfonia de desespero, a minha quase sempre termina em desmaios, já a deles temo qual seja o fim.

Havia tempos mais difíceis onde diariamente me via presa na Jaula, minha tutora me contava da época em que houve torturas a todos aqueles que se revoltassem contra o governo, a Jaula era nossa tortura por nos rebelar contra a... Contra a... Meu corpo passa de um simples arrepio para uma forte convulsão, só de pensar em falar seu nome, O SEU NOME. A Jaula, não me canso de repetir para perceber que hoje estou livre deste lugar, livre fisicamente, mas minha cabeça hoje é a Jaula, tortura diária, medo intrínseco, calafrios constantes, carne viva, olhos com pupilas arregaladas de êxtase, a Jaula nos deixa viciados e a falta dela nos traziam efeitos piores.

Me lembro com detalhes do dia em que a conheci, o nome impronunciável, lembro de te amar a primeira vista, de confiar em ti, como uma mãe pássaro que acalenta e alimenta seus filhos com sua própria deglutição, eu não me importava se faltasse tudo a mim, desde que você ficasse ao meu lado me observando voar. Nunca tive uma família, em ti vi minha primeira esperança, confesso que uma ponta em mim continua gritando por ti, e isso dói, machuca, arranca meu viver três vezes a mais do que já sofri na Jaula, três vezes a mais do que sofri aqui, três vezes a mais minha loucura adquirida.

São tantos detalhes a se lembrar, eu nem sei se quero lembrar, mas tenho que lembrar e gravar, nem que seja cortando minha pele, para que todos vejam o que essa vaca fez com todos, podem estar respirando, mas vivos com certeza não estão. Já senti tudo o que tinha, a raiva me corroeu, as lágrimas secaram em meu rosto, a tristeza me enterrou, e hoje já não sinto nada. É difícil definir este nada, é como não ter o tato, o paladar, é como não sentir o aroma, nem o aroma de um cadáver.

Eu sei, seria melhor tirar minha vida, eu já tentei, todos nós já tentamos, é algo impossível, se ameaçar qualquer ato contra nossa vida ou a de outro a Jaula nos mostra como é morrer dos jeitos mais dolorosos e eu já morri dos jeitos mais dolorosos, minha pele já ardeu em chamas, fui sufocada, enforcada, esquartejada, envenenada, foram por essas dores que passei para tentar encerrar minha dor maior.
Parece exagero o quanto a Jaula nos faz enlouquecer, o quanto nos esgota até nos transformarmos em um pedaço de carne e osso, sem expressão, sem amor, sem sonhos, expostos em uma vitrine, como em um açougue, onde nosso sangue escorre de nossa carne e as pessoas fazem fila para consumi-la.

Gostaria que essa história fosse sobre o amor e como ele pode salvar o mundo, mover montanhas, permitir que possamos ter esperança de novo. O amor real que compreende, acolhe, cresce independente das dificuldades. Eu já senti isso um dia, aqui dentro dessas paredes pálidas, dessa sala vazia, do vão que se faz entre o real e a liberdade que encaro toda vez antes de dormir. Sim, eu vivi isso, vivi intensamente e me trouxe tudo o que restava, todas as últimas chances, mas essa história não é sobre o amor, infelizmente não é sobre amor.

O tempo passou aqui, passou e não voltou mais, não andou mais, uma hora, um segundo, um ano, quem sabe?

A pequena Ana perdeu sua juventude assim que entrou, com nove anos, o tempo se perdeu. Hoje está uma mulher feita, creio que tenha idade para sair sem a permissão dos pais, imagino por conta de sua aparência, mas isto é algo que não pode se confiar. O tanto que essa garota passou deteoriaria sua pele infantil e a transformaria em uma pele grossa, rugosa, estragada pelo sofrimento.
Como a minha pele, anêmica, transparente, minhas veias saltam, pulsam em vermelho vivo, as cicatrizes se mostram em primeira camada, as cascas já caíram, mas a marca ainda se vê, uma, duas, três, a conta se perde.

A conta se perde, eu me perco, nós já nos perdemos, Ela já se perdeu. Se perdeu em seu propósito, nunca soube essa sua missão de vida, ouvi de tua boca o esboço desse sonho, mas o propósito se perde novamente, e novamente se deixa vago. Estamos presos em vão, em um vão, abandonados, esquecidos, reclusos, o chão em que me deito hoje está preto da sujeira que meu corpo expele, do sangue que escorreu em baldes, cada poro de minha pele sangrou, tantas vezes agonizei, pedi por minha mãe, a mãe que nunca cheguei a conhecer, ajoelhei por meus irmãos, irmãos estes que inventei, gritei por meu pai, por quê me abandonou? Por quê não ouve minhas dores? PAI, MÃE, IRMÃO, ELA, o que Ela fez comigo ?

***

"Oi mãe, oi pai, oi irmão" com oito anos costumava adentrar meu quarto e cumprimentar cada um de minha família com um beijo na bochecha. Minha mãe era esguia, de cabelos ruivos tingidos, papai era forte, um exemplo de homem, me ensinou tudo que sabia sobre a vida. Meu irmão, um anjo, brincava comigo mesmo sem vontade.

Minha maior dor foi ver minha família de brinquedo sendo jogada no lixo. Tinha 15 anos e já era grande demais para brincar com bonecos, as pessoas iriam pensar que eu era retardada. Ninguém iria querer adotar alguém que dormia abraçada com bonecos e os tratava como pais, porém mesmo com minhas fantasias materiais sendo descartadas, continuei fantasiando. Agora que não tinha nada, nada podia ser tirado de mim.

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