Começo- capítulo 2

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Fiquei espantada ao ver sua casa, pela primeira vez, muro de pedras, um portão suntuoso com um brasão de sua família destacado ao centro para que todos que passassem pudessem invejar sua vida perfeita. Ramos de flores raras circundavam os arabescos, dando forma a uma grande letra M, letra esta que indica as palavras monstro, mesquinha, malévola, meticulosa, mentirosa, morte.

O significado real eu não sei dizer, deve ser a herança do sobrenome deixado por sua família. Seria sua maldade algo herdado também? Seriam todos seus ancestrais assim como Ela? Ou Ela é a semente do mal que sujou o legado? Sei contar apenas o que presenciei, nunca tentei buscar a fundo sua história, o que conheço é apenas pela visão dEla, pelos lábios dEla, pela paixão por Ela. Essa paixão me cegou e não pude ver o fim, minha fantasia de poder tê-la comigo para sempre e depois do sempre me impediu por muitos anos de reagir, confrontar, lutar pela minha vida.

Eu fui inocente com suas promessas, eu fui inocente quando decidi ficar e deixar que Clementine fosse embora. Eu fui burra, burra, burra, me perdoe Clementine. Quero ver seu rosto mais uma vez, sentir sua pele macia, deixar que meu nariz passe pelo seu pescoço e seu aroma infiltrar em mim. Seus olhos foram os únicos que me descobriram. Sua felicidade era de contagiar, não era algo falso ou superficial que no fundo esconde uma tristeza e raiva profunda. Não, sua alegria era genuína, sempre nos pedindo para sonhar "porque sonhar é de graça meu amor", ela dizia sempre passando seus dedos compridos sobre meu rosto e dando um enorme sorriso que expunha seus dentes tortos.

A primeira vez que nos vimos foi em um dos encontros dos prisioneiros oficiais da Ela. Não sabia se ela estava a mais tempo do que eu, não temos como saber, mas pouco importava, a última coisa que eu precisava era conhecer pessoas novas depois de um tempo na Jaula. Eu estava vestida com uma túnica branca, um paralelo entre camisa de força e vestido de verão. Estava coçando incessantemente meus braços, olhava fixamente para meus pés encardidos e minhas unhas roídas pelos meus dentes, o chão era frio, mas era algo que me acalmava, como uma brisa que fica quando se vai à praia. Ela segurava com afeto meus braços presos nas costas por um cordão - Ela a maioria das vezes me fazia isso quando saía da Jaula - seus passos eram curtos e hesitantes, seu rosto eu não conseguia ver, apenas ouvia o barulho de seu salto agulha sobre o piso de concreto que em sincronia formava uma música em meus ouvidos. Um, dois, três, um, dois, três, meus pés acompanhavam os dEla. Subi na meia ponta para representar o salto, arrumei minha postura, olhei para frente com o nariz empinado, e voltei a contar, agora em voz alta, um, dois, três, um, dois, três. Não deu tempo para Ela me repreender, assim que comecei a imita-la a porta grossa e sem cor da sala se abriu, e todos presentes arregalaram os olhos ao me ver naquela posição. Quando ouvi um riso alto e estrondoso, olhei em direção a este som e foi então que meus olhos encontraram os de Clementine. Não era minha intenção chamar atenção ou provocar algo ruim na Ela, era apenas um modo de me distrair, mas não nego que ouvir aquilo me trouxe por um momento à realidade.

Minha barriga doeu de tanto gargalhar, e fiquei impressionada por Ela ter esperado por tanto tempo nossa alegria, antes de me puxar pelos braços para dentro do espaço que continha apenas duas mesas longas e bancos. Caí com o rosto contra o piso e levantei às pressas. Senti algo escorrer, mas não era sangue, comecei a transpirar, meu corpo estava fervendo, meu rosto claramente estava vermelho, me senti extremamente envergonhada. Já no fim da sala olhei para trás em direção à Clementine, vi seu rosto franzido em preocupação, então balancei cabeça para dizer que estava tudo bem, e como resposta vi seus lábios formando a palavra "Desculpa".

* * *

A noite era composta de petricor e ruídos. O quarto era iluminado por velas, as janelas semi abertas, que deixavam o vento gelado passear pelas paredes úmidas e descascadas pelo tempo, provocavam o melódico fragor. Senti um arrepio na espinha e um medo infantil, senti a presença de outro alguém, mas logo ignorei a ideia. Me deitei sobre minha cama, me enrolei com a coberta e fixei meus olhos no teto, esperando o calafrio passar e o sono vir. Olhei o relógio, se passara duas horas e o nada pairava, o nada e o temor aumentava. Ter uma pessoa ali comigo não adiantaria, correr para a rua não ajudaria, enfrentar o escuro parecia impossível, me conformei com o enrijecimento de meus músculos.

Meus olhos pesaram, e a presença conchegou-se em meus ombros, gélido, meu corpo petrificou, havia algo comigo. Meu pescoço encruou e espasmos tomaram conta de meu corpo, incessantemente buscava abrir os olhos, mas os mesmos reviravam em agonia. Com minhas unhas arranhei meu braço e pude sentir o sangue escorrer, aquilo não era um pesadelo. Quando enfim meus olhos se abriram e meu corpo voltou ao meu controle, pude ver pela janela o sol nascendo. A noite se foi e junto com ela minha lembrança deste dia. Uma lembrança que voltaria a me assombrar por todo resto de minha vida.

Vinte e alguns anos, vinte e alguns anos, vinte e alguns anos revivendo esse dia, e vivendo nesse dia, e presa nesse dia e com esse medo infantil. Meu pescoço ainda encrua, meus olhos se mantém abertos para encarar as criaturas que hoje sei serem reais, mas ainda procuro meus braços para acordar. Encarei a morte por inúmeras vezes, e nenhuma delas é tão dolorosa quanto ver seu rosto gozar com meu agonizar.

* * *

Acordei no meio da noite com batidas vindas da porta do dormitório número 7, o meu. Meu sono é leve, o que me faz despertas com quaisquer sons, inclusive aquele leve tilintar de anéis contra o concreto. Ouvi a voz de Ela quase em um sussurro dizendo para eu encontra-la em sua sala. Minhas pálpebras pesavam sobre meus olhos, a embriaguez do sono fazia com que desaprendesse a andar ou falar. Minha visão estava vertiginosa e pontadas atingiam minha nuca, às vezes sinto como se alguém tivesse bordando em meu pescoço, os pequenos detalhes de uma rosa, usando uma fina e precisa agulha. Cambaleando fui até a porta composta de concreto, ferro, sangue e desespero. Perguntei o que queria de mim tão tarde da noite e então um som estranho me acometeu, o de chaves girando sobre a fechadura, aquela cena em câmera lenta, suspense, com respingos de terror.

A porta estava completamente aberta, eu poderia correr agora mesmo e tentar me jogar por uma das janelas, ou roubar suas chaves e ir correndo para Clementine, porém apenas disse "O que quer de mim?". Sua resposta não poderia ser mais assustadora "Precisamos conversar". Sua voz grave como a de um cantor de ópera me fez engolir em seco e meus olhos cansados despertarem. Me aproximei e estendi meus braços, mas vi uma confusão em sua face. Apesar de ter pego as algemas, parecia não querer colocá-las em meus pulsos. Não seria a primeira vez em que andara ao seu lado sem os braços presos a minhas costas, porém seria a primeira vez que hesitara a fazer isso. Suas decisões sempre foram pontuais, contudo neste momento vi medo em seus olhos. Seria medo de mim? Foi o que lhe questionei, apressada em uma resposta, para que eu não tomasse a liberdade de continuar a indaga-la, ela disse olhando fixamente para meus pés "Que besteira". E então avançou pelo corredor carregando as algemas em sua mão direita, e as diversas chaves em sua mão esquerda.

Ela parecia estar desarmada, de corpo e alma, nunca a vi tão sensível, seus passos eram pequenos e seus sapatos não se chocavam contra o piso em uma melodia. Pude sentir a preocupação transpassar outra dimensão, onde eu não estaria aqui e Ela não seria ela.

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