"Bom dia Ametista" disse Clarice, "Bom dia Clarice" respondi à ela. Pelo tom de sua voz soube que estava na hora de levantar e me preparar para a entrevista mensal com adotantes em potencial. Há um mês eu completara quinze anos, idade mais conhecida como o fim da esperança de ser adotado. Porém, como qualquer criança que viveu sem um pai e uma mãe, mantive a confiança de que eu não seria parte da maioria que aos dezoito recebe a emancipação de uma vida perdida em falsa fé.
Levantei depressa, minha visão tornou-se turva e preta, parei por um momento encostando meus dedos em minhas têmporas, apertando com força meus olhos, não era raro que isso acontecesse, ainda mais com a minha frequência de noites mal dormidas, cinco horas ou doze horas, não fazia diferença, meu corpo sempre acordava cansado, exausto, como se diariamente corresse uma maratona, sem pausas para água. Meus sentidos voltaram ao lugar aos poucos; meu paladar estava rançoso, minhas mãos inchadas, um peso se apossou de minha coluna, o piso chamava por mim como dois ímãs se atraindo. Abracei o chão, palma da mão esquerda derreteu entre os tacos, meus dedos dos pés se feriram ao tentar tomar controle e impedir que meu corpo se tornasse parte daquela residência, que fedia a mofo e spray "aroma de verão". Eu estava me rendendo, minha respiração diminuía, meus pulmões pressionavam contra meu peito e enquanto desfalecia, hiperventilava e ouvia o meu fôlego se esgotar; Clarice mostrava os aposentos aos meus pretendentes.
Tentei manter a calma para que minha respiração voltasse, logo os desconhecidos estariam no meu quarto e eu estaria quase nua estancada no piso, mas meu peito relutava em me ajudar, minhas costelas pediam por socorro e minha voz gemia em sílabas de dor. A hélice quebrada do ventilador rangia, seu barulho repetia em minha cabeça como um jingle, e tão urente quanto unhas arranhando um quadro negro. Os passos de Clarice tornaram-se mais próximos, ela estava a nove degraus de mim, pude sentir uma poça de suor se formar, oito degraus de mim, meus olhos se arregalaram, quatro degraus de mim, eu não tinha outra saída, um degrau de mim, ouvi a porta se abrir.
"E por fim iremos conhecer a Ametista. Meu Deus menina, o que aconteceu com você?". Uma mão se apoiou em minhas costas. "Acorda menina", a voz estava desesperada. "Alguém chama a ambulância", a voz gritou.
*. *. *.
"Bom dia" Clarice disse, "Bom dia Clarice" respondi a ela, pelo tom de sua voz soube que aquele casal não se interessou por mim, levantei sem pressa. No chuveiro deixei a água fervendo escorrer pelo meu peito tomado por uma queimadura inexplicável, o médico não teve explicações, uma senhora me ofereceu uma ida à igreja para me benzerem, recusei, não por não ser religiosa, mas por achar que nem um exorcismo resolveria.
Me cobri com a toalha, olhei para o espelho embaçado e a cicatriz pulsava sobre minha visão, ela parecia viva, respirando independente de mim, vermelho sangue, enrugado, as linhas que se formam são como nervuras de uma folha de roseira. Não ligava para a minha aparência, nunca fora algo que coloquei minha atenção, porém nesse momento percebi que aquela carne viva se apossaria de mim caudalosamente.
Não tentei o esconder, não tinha vergonha, não tinha medo. Aquilo era meu nome, meu codinome, minha sina, meu ser, mais eu do que eu mesma. Não tinha o porquê camuflar.
Sondei minhas linhas, meu prenome não era Ametista, Linda, Melissa, Beatriz, Marina, Gabriela, Heloísa, Larissa, Sofia, Safira, nem indivíduo. Somente cicatriz.
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ELA
Mystery / ThrillerA pequena janela situada no topo de seu dormitório é sua única companhia. O pedaço de céu que lhe restou é sua única escapatória para o mundo exterior. Mas sua mente é controlada por Ela, e seus pesadelos tornaram-se sua realidade. Nessa trama de te...