Capítulo Único: Vanguarda

127 25 75
                                    


Quando eu era mais jovem, sentia dor ao me conectar às Memórias; hoje, é o lugar que mais me traz paz. A sensação da substância gelatinosa e fria cobrindo seu corpo e, pouco a pouco, inebriando seus pensamentos, paralisando seus músculos e lhe levando para outros mundos, é diferente a cada vez que me submeto à experiência. Sua mente ganha asas enquanto o corpo relaxa e submerge. De longe, amo o momento em que abro os olhos novamente e percebo que estou em outro lugar, outro mundo, outro tempo... O arrepio na base da coluna, o frio na barriga; sou uma viciada em Memórias.

Talvez reviver histórias do passado seja tão acalentador para mim por razões distintas; seja porque eu não me dou muito bem com as pessoas ou mesmo porque é mágico viajar pelas eras e reviver coisas como se estivéssemos lá. Ir até o Grande Encontro de Skotraves e Príton e acompanhar a conversa que tiveram ou ver o momento em que o primeiro hjarneliano gerou sua própria luz... Mas há Memórias em especial que gosto de visitar: as da humanidade. Há tantas coisas que não compreendo acerca dos humanos, mas ainda assim, sinto-me tão conectada com eles... É como se houvesse algo em sua jornada que viajasse além do plano físico, indo até os confins do universo e então voltando para o centro, tudo num segundo.

Tem uma Memória em especial que sempre me atrai: a primeira viagem ao satélite natural de seu primeiro planeta, a Lua. Saber que, ainda hoje, temos acesso às Memórias dessa raça e entender um pouco como pensavam... É engraçado. Apesar das bilhões de outras espécies para se conviver em seu próprio planeta, os humanos nunca se contentaram e passaram milênios buscando por vizinhos alienígenas. Entretanto, nunca saberei qual é a sensação de duvidar, de imaginar se há ou não alguém lá fora olhando para a mesma estrela que você e se perguntando: Será que existe vida ali?

É difícil para mim - impossível, na verdade - imaginar um universo onde apenas o meu planeta seja povoado. Vivendo em um sistema solar com dezesseis planetas, sendo oito civilizados, é complicado assimilar a ideia de se viver como eles viveram. Mais difícil ainda é compreender o verdadeiro sentimento deles com relação a isso, essa vontade de conhecer novas espécies, de não ser apenas você no meio de tudo. É, talvez eu entenda um pouco como é se sentir solitário no meio de um universo inteiro, mas ainda assim, não é a mesma coisa. Eu tenho as Memórias para me acalmar e divertir, mas e eles? Eles não tinham isso... Deve ser por isso que tantos humanos faziam guerras contra si próprios.

Outra Memória que não consigo deixar de lado é a da primeira viagem a Marte. Ah... Eu sei que é clichê e sei que você provavelmente já deve ter visto essas Memórias umas vinte vezes, mas eu vejo quase todos os dias e sempre sinto algo diferente. Acordar ali no meio do deserto gelado do planeta vermelho e acompanhar o primeiro passo humano neste planeta é tão... Singelo. Sutil. Foi o primeiro passo, oras! A primeira vez que a primeira espécie saiu de seu próprio planeta e foi até outro. As possibilidades eram tantas! Imagine o que eles não estavam pensando e esperando! Será que tinham idealizado aquele momento em suas cabeças dúzias de vezes, esperando apenas que uma das versões se tornasse realidade? Ou talvez eles estivessem com tanto medo que, inconscientemente, desejavam que não houvesse nada naquele planeta!

A única coisa que me entristece é o final, mas ele também me deixa com uma sensação de esperança, um misto de felicidade e baixo astral. Quando os astronautas olham ao redor e percebem que ali é realmente o que eles esperavam - um deserto de areia vermelha com temperaturas congelantes e ar rarefeito -, o humano só é capaz de proferir uma frase, mas ela é tão impactante, tão profunda...

"É como esperávamos: vermelho, frio e sem vida...". E você, assim como eu, pode ter pensado nas primeiras vezes que acessou essas Memórias: "Puxa, que coisa triste! Eles descobriram que estão sozinhos mesmo!". Mas ainda tem mais! Aquela ponta de humanidade, essa perspectiva que somente os vanguardistas conseguiam ter, um senso de esperança imbatível: "Ainda não encontramos eles.". Viu? Consegue sentir o mesmo que eu? Tem aquele toque de desapontamento, mas ao mesmo tempo a expectativa de que a próxima viagem, a que os levará para o próximo planeta, será a que trará o primeiro contato com outra espécie, um vizinho distante e estranho - mas amigável - para compartilhar o universo inteiro.

Apesar de ter acessado as Memórias da humanidade tantas vezes e de saber como a história deles termina, sempre que começo do zero me vem aquela vontade de torcer para que o final seja diferente, como num filme em que o final é feliz. Ao invés de passar toda a sua história procurando por outras espécies e, no fim, descobrir que são os primeiros, eu torço todas as vezes para que apareça alguma espécie diferente, mas ela nunca aparece...

Como será que se sentiram os humanos ao descobrir que não havia mais ninguém no universo? A primeira raça inteligente do universo, a vanguarda destinada a ser o elo entre todos os descendentes...

Que honra!

Que fardo.

VanguardaOnde histórias criam vida. Descubra agora