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Eu nasci no berço evangélico, como costumam dizer por aí. Prego quase sete dias por semana e mais de uma vez por dia. Minha agenda vive lotada. Minhas redes sociais vivem ativas pela Sabrina, minha assistente. As igrejas que eu visito sempre estão cheias de pessoas para ver o grande pastor Charles França sendo usado por Deus. E Deus sempre me usa para falar com Seus filhos através da Sua palavra. Sempre me usa para curar Seus filhos. Eu ouço quase todo santo dia o quanto eu sou abençoado por Deus e o único problema de tudo isso sou eu.

Vivo cercado por pessoas e não há um dia sequer que eu não me sinta sozinho. Eu não tenho família nem tenho amigos de uma longa jornada. Eu tenho um legado, mas não tenho ninguém para fazer de meu sucessor. Eu não tenho ninguém.

Tenho 42 anos, filho único, pais mortos, sem filhos e esposa falecida há 10 anos. Morta por pregar o Evangelho de Jesus Cristo. Sim, exatamente.

Já perdi a conta de quantas vezes vi pessoas expelirem suas doenças na minha frente. Paralíticos andarem, cegos enxergarem e até mesmo já vi ossos sendo curados a olho nu. Eu tenho o dom da cura dado por Deus. Tenho esse dom desde que me entendo por gente e aceitei o meu chamado desde então. Aos 18 anos eu já estava na África fazendo trabalho missionário e não parei por aí. Visitei cada continente e meu nome ficou conhecido em cada canto dessa Terra. Eu nunca quis a fama, na verdade, até preferia o anonimato, mas tudo começou a fugir do controle e eu apenas segui com o curso deixando que Deus realizasse o plano e fizesse de mim apenas um instrumento.

Eu me casei aos 27 anos de idade com mulher mais linda desse mundo. Jamile também era uma missionária e fomos juntos diversas vezes pregar nos países não alcançados. Infelizmente, enquanto estávamos pregando na Coréia do Norte, fomos perseguidos; alguns foram capturados para serem levados para algum tipo de prisão com tortura, outros foram mortos, apenas eu e mais 3 pessoas escaparam dentre as 20. Jamile não foi uma das três. Ela foi morta e levou consigo nosso filho.

Depois de 5 anos de casados, fomos agraciados com a bênção de um filho. Eu não queria que ela viajasse, mas ela disse que uma gravidez de 6 meses não a impediria de espalhar a palavra de Deus. Jamile morreu glorificando o nome do Senhor e naquele dia, foi o primeiro que em que eu desejei morrer.

Dez anos se passaram, nunca mais olhei para nenhuma outra mulher de modo romântico. Nunca soube qual a sensação de segurar meu filho nos braços. E nunca saberei se teríamos outros filhos.

Todos os dias eu lembro a mim mesmo que minha família era um presente de Deus e, como disse Jó: "Deus me deu, Deus tomou, bendito seja o nome do Senhor". Eu deixei de tentar entender o porquê disso, por que eu tenho esse dom tão grande de cura e ele não serviu para curar minha própria esposa? Por que não consigo curar a mim mesma e essa dor que todos os dias faz com que eu queira sentir meu coração parar de bater? Por que ela e não eu? Eu sei muito bem que os planos de Deus são melhores que os nossos e muitas vezes não os entendemos, mas não consigo arrancar essa dor de dentro de mim.

Todos os dias eu prego em uma igreja diferente. Pessoas diferentes, doenças diferentes. Problemas diferentes. A única coisa que nunca muda é minha vontade de morrer. Em todos os lugares que eu prego é como se fosse a última vez, ainda na esperança de que Deus permita que eu morra, no entanto, nunca acontece.

Eu me dedico a cumprir o meu chamado, eu oro todos os dias, estudo a Bíblia e livros em relação á ela. Eu jejuo, consagro e, ainda assim, a dor nunca vai embora.

Eu amo estar em cima do Altar, no momento em que estou pregando é o único momento em que eu me esqueço da dor, que eu me esqueço de tudo que é ruim. Eu esqueço que quero morrer e prego sobre a vida. Eu já questionei a Deus sobre a hipocrisia disso, já perguntei quando isso iria acabar. Mas Deus apenas diz para que eu siga o meu chamado.

Pelo menos eu posso dizer que amei alguém na vida. Porque eu amei Jamile com todas as minhas forças. Eu ainda a amo e eu sei que daria minha vida por ela assim como Jesus deu Sua vida pelo povo. A diferença é que Jamile merecia, o povo não.

Hoje eu já preguei de manhã, à tarde e estou indo para meu compromisso da noite. Sinto-me até agradecido por pregar tantas vezes todos os dias, só assim eu não fico em casa olhando para o teto do quarto que dividia com o amor da minha vida ou olho para o quarto do outro lado no corredor que seria o quarto do meu filho. Eu pensei em me mudar tantas vezes, mas nunca tive força suficiente para fazê-lo, talvez eu seja mesmo um masoquista e goste de ter por perto aquilo que me machuca e me faz chorar por horas a fio. Ou talvez apenas tenha esperança de que tudo isso acabe e eu não levante mais quando for dormir.

— Chegamos, pastor — avisa o obreiro que me trouxe hoje. Eu prefiro não dirigir e me apego às oportunidades que tenho quando as igrejas têm quem possa me busque.

— Obrigado, meu filho. Que Deus te abençoe.

O obreiro se adianta em abrir a porta para mim, faz questão de me acompanhar enquanto entro na igreja para me levar até o lugar reservado para mim. É sempre assim em todo lugar que eu vou, meu nome parece chegar antes de mim em todos os locais.

Algumas pessoas me cumprimentam enquanto sou guiado até o altar. Ainda é cedo, o culto não começou e os músicos estão afinando os instrumentos, mas a igreja já conta com um número considerável de pessoas. Eu não consigo me lembrar da última vez em que entrei numa igreja apenas para cultuar, ouvir outra pessoa com a responsabilidade de pregar. É claro que já participei de congressos e vigílias em que alguém além de mim pregava, mas eu sentia falta mesmo era de poder sentar pelo salão da igreja, fechar meus olhos e apenas ouvir a voz do Espírito Santo para mim mesmo e não para repassar para todos que estão me ouvindo pregar. Minha vida não tem sido fácil há muito tempo, perdi completamente aquela chama que me fazia querer levantar todos os dias e ser grato pela dádiva de viver, entretanto, nada disso fez com que eu perdesse minha fé em Deus ou meu prazer em adorá-Lo, somente por Ele eu aguento todos os dias, mesmo que pareça um grande sacrifício para mim, nunca será comparado com o sacrifício já feito por toda a nação.

— Pr. Charles França! — Ouço me chamarem logo quando ia me ajoelhar em frente ao meu lugar para começar a minha oração. — Que honra recebê-lo aqui. — Um homem na faixa dos 50 anos me cumprimenta com um sorriso extravagante e estou muito acostumado a ver. O homem está com o terno muito bem alinhado e a gravata é no tom vermelho-sangue, assim como muita coisa na decoração da igreja.

— É um prazer esta aqui, hã...

— Pr. André Vieira, o pastor presidente dessa congregação.

— É claro, desculpe-me, pastor. Deveria tê-lo reconhecido com o grande banner que tem lá fora com a sua foto. — Dou um sorriso amarelo. Odeio bajulações ou autopropaganda à mercê do Reino.

— Imagina — o pastor comenta sem graça. — Por favor, sinta-se em casa. Temos uma recepção já pronta para que se sinta muito confortável enquanto não chega o momento da palavra. O culto vai começar em instantes com o momento de louvor e adoração.

— Não, obrigado. Eu estava prestes a começar uma oração e gosto de acompanhar o culto. Se não se importa, pode deixar para quando o culto acabar, amém?

— Hã... Claro, amém. — O pastor sai sem graça.

Estou acostumado com pessoas achando que vou preferir ficar em algum sofá ou comendo alguma coisa enquanto converso e fico esperando até o momento em que tenha que entrar para começar a pregar, mas eu nunca fui esse tipo de pessoa, eu gosto de estar no culto do começo até o fim, não importa o tempo que dure, a importância que deem para ele ou a quantidade de pessoas que estarão ali, eu ainda acredito que um culto é dado para o Senhor e a todos que vou, é para cultuar a Ele.

Finalmente dobro meus joelhos para começar a minha oração e, como todos os dias, peço que Deus me use como Seu instrumento para curar vidas e anseio pela cura da minha alma ou que meu trabalho finalmente termine e eu possa descansar em paz.









Escrever sobre esse assunto não é fácil. Sou uma pessoa apaixonada pela vida, mas que também enfrenta problemas diários como qualquer outra pessoa. Quando senti no coração de escrever sobre isso, foi apenas o intuito de mostrar que qualquer pessoa, independente de quem seja ou o que faça, tem momentos ruins e pensamentos ruins, o importante é nunca desistir da vida. 💛

Luz que brilha na escuridão [degustação]Onde histórias criam vida. Descubra agora