36. like muriel bing

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A noite três dias atrás havia sido um completo fracasso: Charlie comera incontáveis sanduíches gregos esquisitos e aparentemente nenhum deles lhe caíra bem, e na manhã seguinte, na cozinha do andar térreo, ele me analisava enquanto me servia de cereal com leite com sua carapuça pálida assustadora, me julgando com o olhar. Ele já era anormalmente medonho, feio e mal humorado nas épocas em que não havia do que reclamar, portanto, não estávamos surpresos com o fato de que gritava até mesmo com o vento sacudindo as janelas. O clima chuvoso tornava tudo pior, não importava o quão aconchegante eu o achasse, sentia que era uma expressão da minha vida e que as coisas se enegreciam cada vez mais. Eu me sentia uma daquelas nuvens carregadas no céu, pronta para despejar tudo de mim.

Eu subi as escadas com pressa, não querendo ter Charlie em meu campo de visão nem por um segundo a mais, ou ele gritaria comigo e diria que eu estava desperdiçando seu precioso cereal de cores raras. Era difícil equilibrar a tigela e o celular envolto nos fios do fone de ouvido nas duas mãos, mas com muito esforço eu consegui alcançar o corredor. A porta do quarto de Jaeden estava fechada, mas ainda assim era possível ouvir Blow tocar em alto e bom som, chegava a ser desrespeitoso. Eu bufei o mais alto que pude, empurrei a porta do meu quarto com um ombro e coloquei minhas coisas na escrivaninha. Eu estava um pouco mais contente com ele agora; havia removido todas as rendinhas a vista, os incensos escondidos, os quadros esquisitos e os vasos feios de Ametise. As paredes ainda eram cor-de-rosa, e isso me consumia, mas eu não podia cobri-las ainda, precisava arranjar uma boa tinta. Além do mais, todos os dias, exatamente às seis da manhã, começava a chover, e então parava apenas às seis da noite. A chuva era pontual e imutável. Era irritante, para falar a verdade, porque as lojas de tintura da cidade abriam apenas às oito e fechavam às cinco. Eu estava começando a sair do sério.

— Ei — eu ouvi e me assustei, quase derrubando minha tigela de cereal da escrivaninha em frente a janela. Jaeden havia abaixado o volume da música quase ao mínimo e tinha seus braços cruzados, escorado no batente da porta. Eu franzi o nariz para ele e desviei o olhar, irritada. — Você ainda está chateada?

— Não — murmurei sem muita vontade. É claro que eu estava, ele havia sido um idiota quase como Finn Wolfhard na noite passada, no restaurante exótico, o Dairy Queen, e merecia minha raiva, ao menos um pouquinho.

— Ah, jura? — ele se aproximou, me analisando enquanto eu ajeitava nervosamente os itens sobre a escrivaninha. Então me virei para ele, fazendo com que sorrisse ligeiramente. — Seu nariz de tigresa agora é bandeira branca?

— Me deixe em paz com meu cereal, por favor! — eu o olhei, suplicando por um pouco de paz. Jaeden era uma das pessoas que menos queria ver naquele momento.

— Você está brava, não vou deixá-la aqui sozinha. Se você quer saber, eu estava chorando lá mesmo no meu quarto... por isso estou com o nariz vermelho, veja — ele fez uma expressão de quem estava desesperado por perdão. Ele não o teria tão rápido.

— Você está gripado, Jaeden.

— Mentira! — falou com firmeza, batendo um pé no chão e fechando um punho para reforçar o que dizia. Eu ergui as sobrancelhas ao vê-lo rolar os olhos, exibindo suas escleróticas, na tentativa de reprimir um espirro. Não foi um plano bem sucedido, pois ele logo soltou um ruído esquisito como um grito. — Tá, ok, talvez seja verdade! Mas apenas em parte. Um espirro só não quer dizer nada!

— É o seu oitavo hoje.

— Você está contando meus espirros?

— Não... — eu tossi como quem queria distrai-lo e fazê-lo esquecer do que dissera. Jaeden segurou meus ombros, chegando mais perto, e uniu as sobrancelhas. A luz vinda da janela atrás de mim fazia com que parecesse ainda mais pálido, mas ele continuava bonito, ainda que fosse um monumento ao Gasparzinho. — Você grita toda vez que espirra, eu estou contando todos os sustos que já levei, seu idiota!

— Nah, meus espirros são quase inaudíveis — ele fez uma careta, discordando. — Mas olhe aqui, eu sei que você está furiosa. Sei também que você se preocupa por eu estar doente, e isso é bonitinho, e eu adoraria que você me preparasse um chá, sabe... ah, eu estou desviando do assunto, tudo bem. Eis aqui o mais importante: eu sinto muito, de verdade. E mesmo eu sendo um idiota você se importa comigo! Ah, você é maravilhosa!

— Tire suas mãozinhas de mim, saia do meu quarto e vá ouvir suas bandas esquisitas. Eu quero ter uma refeição infeliz em paz — eu empurrei as mãos de Jaeden dos meus ombros e me virei de costas, como se fosse adiantar de algo. Ele me observou enquanto eu ocupava a cadeira da escrivaninha, desenrolando os fios do meu fone de ouvido.

— Eu defendi o Finn — ele continuou como se não tivesse me ouvido ou visto, pois deixara mais que claro que o queria distante de mim. — E eu me arrependo de tê-lo feito. Finn foi um babaca. Ele estava se sentindo mal, é claro, qualquer um se sentiria assim no lugar dele...

Eu o olhei como se perguntasse telepaticamente se ele realmente o defenderia outra vez, fazendo com que se calasse. Ele veio para o lado da cadeira da escrivaninha e se ajoelhou, as mãos juntas e o olhar desesperado. Me senti um pouco cruel por rir, mas foi somente até que ele risse comigo.

— Me desculpa, mesmo! Eu estou do seu lado, não importa se Finn é meu amigo de infância, se ele e eu estivemos juntos a vida toda. Ele está errado!

— Ah, bom... — eu suspirei, ponderando por alguns segundos. Mas não se o perdoaria, claro que não, eu me perguntava como não havia o encontrado antes. E por que havia vivido dezesseis anos da minha vida sem um Gasparzinho feito o Lieberher para flutuar ao meu lado e inflar meu ego. Jaeden era ótimo naquilo, e sabia disso. Talvez fosse por isso que ele sorria. — Sinta-se isento de toda culpa. Eu perdoo você.

— Isso! — ele jogou os braços para cima, empolgado, e eu aproveitei a oportunidade para sacudir os fios tão impecáveis do Lieberher. — Ah, não, não, espera! Essa é uma área proibida, Bobby Brown!

— Ah, eu sinto muito! — exclamei com sarcasmo, vendo-o se erguer enquanto ajeitava os cabelos. Eu me levantei e segurei seu braço, que estava erguido na tentativa falha de colocar ordem em sua cabeleira castanha, o guiando para fora de meu quarto sem que percebesse. Jaeden soltou um ruído inconformado quando puxei a porta do meu quarto de forma que ele pudesse enxergar apenas a mim, pronta para expulsá-lo. — Caso não tenha percebido, eu obviamente disse que sinto muito como Chandler Bing diria.

— Como?

— Com falsidade. Um bom dia para você, Jae Jae! — ele estava prestes a me rebater com fúria, mas eu fechei a porta e a tranquei com pressa.

Eu enfim pude relaxar sem olhares sobre mim. Sentei-me na cadeira da escrivaninha, apreciando o silêncio e meu cereal matinal. Se as mensagens não lidas no meu celular pudessem ser pesadas, pesariam o equivalente a todos os elefantes africanos existentes, e ver tal número apenas me desmotivava. Eu queria esquecer as últimas semanas, e meus amigos estavam dificultando as coisas.

sadie diz
mills, olhe, eu preciso te pedir um favor. não é nada complicado, na verdade, e me faria muito feliz, se quer saber.

honestamente, eu não quero, não. tudo o que me interessa agora é comer meu cereal, sasa. você tem três amigos e um namorado a sua disposição, não me venha pedir favores, vamos!

sadie diz
mas só você pode me fazer esse! diga que sim, por favorzinho, diga que sim! você vai gostar, eu prometo!

contanto que eu não tenha que me mover, pensar muito, sentir coisas ou fazer qualquer esforço...

sadie diz
maravilha! bem, então eu vou te encaminhar algumas músicas. eu quero que você me dê sua opinião sobre elas.

pelo amor de deus, era só isso que você queria? eu tenho livros para ler, pessoas a perturbar e uma cozinha para assaltar, sadie sink!

sadie diz
eu sei, eu sei, não é grande coisa, mas é importante pra mim...

é impressionante como você consegue ser manipuladora, mas pra me fazer ser trouxa por texto tem que ser realmente muito boa. e você não é.

sadie diz
ah, tudo bem, joguemos seu joguinho sujo. faça esse favor pra mim e eu te deixo em paz por quanto tempo você quiser, posso envenenar a íris, comprar a mochila da sweetener pra você... você escolhe. mas escute todas as músicas, ok? todas, sem excessões!

ventured to say ˓ fillieOnde histórias criam vida. Descubra agora