Primeira cena: Under Pressure.

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Outubro de 2019.

- Amor é um sentimento cultuado no senso comum. Eu não posso negar que sua descrição é linda, mas já não o vejo como necessário. Depois que comecei a estudar Lacan, vejo que todos os que um dia prometi amar, eram só tentativas desesperadas e intrínsecas de lidar com o desamparo. Eu não amei ninguém por quem realmente eram, só os usei para preencher um vazio.

- Por favor, Sofia! Cala a boca, estamos no meio de uma festa e você está me deixando triste. - seu amigo levantou levando consigo a sua namorada, ambos foram para o fumódromo, deixando Sofia sozinha no sofá.

    Sofia estava sozinha, de novo. Embora não sentisse mais o peso desta solidão corporal, ela sabia que não era um ambiente para se encontrar assim. Ela sequer sabia onde estava, e estaria mentindo caso dissesse que era amiga da aniversariante, Virginia. Ela fizera uma ou duas dependências na turma dela durante a faculdade, isso era tudo.

Todos estavam acostumados com os devaneios de Sofia; observando o lugar, percebendo que o comportamento das pessoas naquele ambiente buscavam satisfação instantânea. Era tanta introspecção que ela não sentiu a presença de outro corpo no sofá.

- Eu não gosto muito de psicanálise, mas sua descrição sobre prazeres momentâneos parece certa.  - disse a mulher, com sua camiseta do Queen que, por sinal, era mais velha do que ela, por dentro do shorts. - Prazer, me chamo Heloísa.

- Qual seu problema com a psicanálise, Heloísa?

- Acho que prefiro o existencialismo.

Heloísa era amiga de Virginia há anos. Contou para a mais nova sobre como entraram juntas na faculdade, antes dela mudar de curso. Falava sobre filosofia com paixão, como quem nada queria além daquilo. Aquele momento, aquele assunto e aquela companhia. Sofia facilitava o diálogo, porque também se interessava pela grande variedade de correntes filosóficas.

- Nunca pensei que pudesse passar por uma experiência tão horrível quanto essa em toda minha vida. - reclamava Sofia.

- Se a experiência musical desta festa te desagrada tanto, eu tenho uma proposta para fazer. - a mais nova assentiu com cabeça, como um sinal para Heloísa seguir em frente. - Daqui a alguns minutos, eu vou precisar ir para outra festa. Meu amigo e sua banda irão tocar no Dalloway's Pub, na cidade ao lado. Hoje é noite de cover do Queen, e eu quero te chamar para ir junto.

- Cover do Queen? Isso explica sua blusa mais velha do que o sofá onde estamos.

- Ei, um pouco mais de respeito. Essa blusa é do Rock in Rio de '85. Você sabe o que aconteceu naquele ano? - perguntou, ganhando um breve 'não' como resposta. - A melhor live de Love of My Life que o Queen já fez.

    Ambas caminharam para direções opostas. Precisavam se despedir de seus amigos, pois estavam deixando a festa antes mesmo da meia noite.

    Sofia não entendia nada sobre carros, mas sabia que o de Heloísa era bonito. Ele era preto, e fazia com que a motorista parecesse mais bonita do que antes. Cantarolando uma música, batendo os dedos no volante enquanto os olhos atenciosos na estrada faziam com que sua coluna ficasse perfeitamente reta.

    O cabelo de Heloísa tinha curvas perfeitas, e eles balançavam e batiam na altura de seu peito enquanto ela cantava Será, do Legião Urbana. Música que Sofia conhecia bem, pois havia sido o tema de sua última decepção amorosa. Mas este era um novo momento, e uma oportunidade de ressignificar cada frase cantada.

- As circunstâncias fazem os homens tanto como os homens fazem as circunstâncias. Eu não poderia concordar mais. - a mais velha desviava rapidamente seus olhos da estrada para encarar Sofia, enquanto concluía sua linha de raciocínio. - Materialismo dialético... Nunca falhou comigo.

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