Capitulo Um

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É uma verdade universalmente conhecida (mas pouco revelada às jovens casamenteiras) que um homem, ao sentir-se vítima de um ardil feminino, vinga-se em dobro. Ou, dependendo da armadilha em questão, pensa Lya ao ler o jornal, decide que a melhor forma de fazê-lo é viver como se a mulher culpada não existisse.

Ela suspira, esparramando-se na sua cama. O Sr. M. B., anuncia o jornal em suas mãos, notório cafeicultor da região, foi visto na companhia da cantora Mademoiselle Hélène Blanc, que está visitando as terras tupiniquins nesta temporada. É dito que o benquisto senhor entrou nas boas graças da francesa de estonteantes olhos azuis e fronte pálida, tendo ambos sido vistos aos sussurros na saída da ópera Il Barbiere di Siviglia, composta por Gioachino Rossini e apresentada no Teatro de Santa Isabel no Recife nesta quarta-feira de vinte e um de março.

Dito em outras palavras, Lya escreve às margens da notícia com sua caligrafia inclinada de quem redige com descuido, supõe-se que Miguel Pinheiro Beviláqua e Mademoiselle Hélène se tornaram amantes ou estão em vias de negociação.

Não faz um mês, relembra, a afortunada da vez era Irene Paiva, jovem que enviuvara há pouco de um marido vinte e cinco anos mais velho e 200 contos de réis mais rico que ela. Antes de Irene, corria-se de boca a boca que Angelina Duarte, notória dama da alta sociedade recifense, quiçá da haute société brésilienne (posto que tudo em francês é chic), também conhecida por ser esposa do Coronel Duarte, arrastava as saias atrás do adônis pernambucano, também conhecido como o digníssimo seu marido.

Dela. Lya Borges Campêlo de Beviláqua. A senhora Beviláqua.

Não que alguma vez ela tenha se sentido casada. A bem da verdade, há seis meses só tinha notícias de Miguel através dos jornais, que chegavam bastante atrasados devido à viagem de seis dias no lombo de mulas até a vila de Garanhuns, no Agreste pernambucano, onde residia na casa de campo do senhor seu marido. Local em que passou a morar depois de um casamento feito às pressas na Concatedral de São Pedro dos Clérigos, seis meses antes.

Exatamente. Eles não se viam desde a fatídica manhã em que juraram amor eterno um ao outro. Não houve sequer a consumação do matrimônio. Lya apenas se viu arrastada para uma carruagem às sete da manhã, com o rosto endurecido pela necessidade de conter as próprias lágrimas e após mal despedir-se de seus pais, rumo a um destino desconhecido, acompanhada tão somente de seus próprios pensamentos conturbados e de um negrinho que lhe conduzia pelo trajeto.

Lya sabia que Miguel estava enraivecido (irado, até). Ela própria estava transtornada, indignada com um destino traiçoeiro que, ao vê-la prestes a se livrar de suas amarras, apanhou-lhe numa cilada tão bem articulada que lhe parecia terem sido as próprias moiras que teceram o clímax da sua tragédia.

Ela só queria escrever seus poemas numa ruela qualquer de Olinda. Viver dos rendimentos que a herança da finada Dona Aurélia Campêlo (que Deus a tenha), sua voinha e irmã de alma, tinha lhe deixado com esse objetivo. Lya não tinha vindo ao mundo para se casar. Desde que fora ensinada, ainda criança, que um dia um homem a levaria ao altar e se tornaria sua cabeça na terra, decidiu que preferia ser uma só carne consigo mesma. Não que ela comentasse esse raciocínio por aí. Até mesmo sua voinha não continha o riso, mas num tom que era um misto de repreensão e pilhéria, ao responder "Que heresia".

A saudade apertou-lhe o peito. Se sua voinha estivesse viva, Lya não estaria sozinha naquele casarão cor de rosa, em uma pequena vila no meio do nada. Se Dona Aurélia viva fosse, corrigiu-se, Miguel não teria escrúpulos de agir como agia, porque no mínimo teria de lidar com uma senhora de sessenta anos puxando-lhe as orelhas até que ele tomasse jeito. Afinal, compromisso que se firma perante Deus, homem nenhum separa. Se preciso fosse, ela mesma emendaria.

Tal deveria ser o comportamento dos pais dela. Eles, no entanto, andavam exultantes com um casamento tão vantajoso que nada parecia ter o poder de desanuviar seus olhos fantasiosos. Sua mãe chegou até a lhe dizer, à guisa de felicitações, que Lya teria tudo o que uma jovem poderia almejar: joias, vestidos, posição social. Aos olhos de Dona Firmina, a solidão seria um preço muito pequeno a se pagar por tamanhas benesses.

Lembrar dessa despedida a constrangia. Miguel ouviu o comentário infeliz e seu rosto se contorceu de repulsa. Sua mãe, contudo, sequer notou a própria descortesia. Provavelmente andava a repetir em alto e bom som o quão afortunados os Campêlo eram com este parentesco. Como se Miguel Beviláqua fosse mover um dedo em benefício da família que lhe roubara o seu inestimável direito de escolha.

Lya se sentia em dívida com ele; ao mesmo tempo, nutria um ressentimento furioso. A situação a que foram obrigados a viver não era culpa de nenhum deles — no máximo, poder-se-ia dizer que ambos foram desleixados, e, por isso, pegos. Em seus dias mais rancorosos, no entanto, imaginava-se gritando com Miguel por seu descuido — logo ele, o experiente do casal.

A ideia fora sua, contudo. O primeiro passo, seu. Miguel foi seu peão no jogo, mas agora ela que estava à sua completa mercê.

Desse momento em diante, seu marido se recusava até a ler suas cartas, que voltavam lacradas do mesmo modo que as enviara. Lya não teve qualquer possibilidade de se justificar, de tentar reparar o dano. Fora largada na casa de campo como um agregado indesejável, enquanto Miguel parecia estar determinado a manter a mesma vida de quando era solteiro. 

No começo, Lya nutria esperanças de que fosse apenas uma fase, um ato justo de revolta diante da inevitabilidade do casamento. Mas, passados seis meses, nada se alterara.

Religiosamente, recebia o dinheiro mensal para sua manutenção através do advogado de seu marido, que a visitava especificamente com este fim. Não lhe era exigido nada além de manter a ordem da casa. O dinheiro era suficiente para comprar mantimentos e pagar quaisquer outras necessidades primárias (como vestimentas, consulta médica ou a reposição eventual de algum objeto ou móvel), além da quantia destinada aos salários dos criados — posto que, aparentemente, Miguel nunca se interessara em comprar escravos, o que o tornava uma incógnita ainda maior aos seus olhos.

Não que ela desprezasse o seu comportamento — muito pelo contrário. Apenas não sabia conciliar o homem tão integrado à alta sociedade pernambucana que conhecera, com aquele que tomava atitudes efetivas em prol de uma causa tão impopular entre a sua própria classe.

Quando se cansou de esperar, passou a juntar o dinheiro que sobrava da sua mesada visando uma possível fuga. Todavia, até pouco tempo atrás, após boa parte de sua herança ter sido gasta com seu indesejado début e o restante ter se incorporado ao patrimônio do seu marido, não lhe restava qualquer esperança de conseguir se manter por conta própria em Olinda, como sempre fora seu plano.

A chegada de uma carta, porém, mudou completamente suas perspectivas.

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⏰ Last updated: Sep 22, 2019 ⏰

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Um terrível enganoWhere stories live. Discover now