Família

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Depois de me despedir de Milena, voltei ao estacionamento e dirigi calmamente até meu apartamento. Meu prédio não é dos mais luxuosos, é basicamente seguro e se encaixa no que posso pagar, já que ainda sou nova na minha área de trabalho. Não tenho grana extra, e cada gasto meu é exageradamente calculado e encaixado em um orçamento.
Depois de entrar no elevador, apertei o botão de número 13, e esperei pacientemente até meu andar. Eu não parava de pensar no rapaz que eu tinha acabado de "ajudar", seu rosto ainda era muito claro em minha memória, mas eu conseguia me sentir feliz por ele. Como já era tarde, eu não dividia o elevador com ninguém, então desfrutei bastante do momento para refletir. Finalmente, meu andar. Abri a porta de meu apartamento de forma tão apressada que assustei a senhorita Morgana, que se encontrava deitada espaçosa em meu sofá de canto, preto.
Senhorita Morgana é minha gata, e vive comigo desde que a adotei, pouco depois de decidir que iria morar sozinha. Morgana é uma gata totalmente preta com olhos de um castanho extremamente penetrante.
Depois de entrar, tranquei a porta e me sentei com senhorita Morgana em meu colo. Eu olhava cada canto do meu apartamento, ele era simples e de certa forma rústico. Eu comprei toda a mobília em cores neutras, naturalmente cinza, branco e preto, todas essas cores sobre o piso de madeira.
- Senti sua falta Morgana. - A gata me respondeu com um miado fino e meigo. - O dia foi difícil...

Depois de algumas minutos no sofá com a gata, tomei coragem e decidi tomar um banho. Poderia optar entre a banheira ou uma ducha, mas é bem óbvio que eu preferi a ducha quando comecei a reforma do apartamento, banho de banheira não é tão atraente pra mim.
Servi o jantar da senhorita Morgana, esperei que ela comesse seu sachê, e a chamei comigo para o quarto. Nunca tinha sentido tanto a falta da minha cama como naquele dia, mas algo me dizia que aquele ano seria cansativo.
Logo que deitei adormeci pesadamente, sem me importar com alarmes já que no dia seguinte seria um sábado.

Meus sonhos foram confusos, como eram desde os meus 12 anos. Eu já não sabia o que realmente eram sonhos, os meus me deixavam exausta.
Na manhã seguinte preparei o café, sentei no sofá com minha bandeja continuei a ler meu livro. Eu estava lendo um romance, um clichê em que tudo sempre da certo. Parei pra analisar minha xícara de café, eu não vivo sem café. Em cada canto da casa ou do carro eu tenho garrafas térmicas, e sempre levo cheias onde quer q eu vá.
Terminei o livro e fui até a janela do quarto regar minhas flores, violetas e pequenas rosas. Elas davam um ar calmo e alegre ao quarto.
Enfim fui ao banheiro me arrumar, me olhei no espelho, estava com leves olheiras, meus cabelos estavam bagunçados. Eu tinha cabelos ondulados e curtos acima do ombro, desde pequena eles eram extremamente negros. Eu pretendia passar o dia de pijama, mas estava longe disso.
Assim que terminei de escovar os dentes, o telefone tocou na sala. Andei lentamente até ele na esperança que a pessoa desistisse.
Atendi o telefone.
-Bom dia! - Eu disse desanimada
- Bom dia senhora... - Disse uma voz que me era muito familiar.
- Mãe? - Não pude esconder minha surpresa. - A senhora... aconteceu algo?
Minha mãe só me ligava em casos extremos, nós nunca tivemos a melhor relação do universo. Devido aos meus "problemas", ou melhor, "deveres" de ceifadora.
- Não meu bem. - Disse ela em voz desanimada. - Eu decidi ir visitar você, mas se for te causar algum problema... - Ela fez uma pausa esperando minha reposta.
- De maneira nenhuma, a senhora pode ficar no outro quarto. - Não sou tão rica pra ter um quarto de hóspedes, para mim é O outro quarto.
- Obrigada, Chego amanhã! Abraços minha querida. - Diz ela por fim, e eu me despedi em seguida.
Sim, a ligação foi de tom seco. Minha mãe nunca foi a mais carinhosa, mas eu sei ser grata por tudo que ela já fez por mim.

Eu arrumava a casa, quando ouvi uma batida. O prédio onde moro não tem interfone, as pessoas só dizem quem querem ver e vão até o apartamento.
Olhei no olho mágico, era um homem que eu nunca havia visto. Ele estava bem vestido, roupas formais, e exalava elegância. Por fim abri a porta, acabei me esquecendo que ainda me encontrava de camisola.
- Olá - Eu disse sem expressar nada.
- Boa tarde senhorita - O homem disse de forma amistosa e simpática.
- Por favor, entre. - O homem passou pela porta com ar cuidadoso e observador, o que não me agradou muito.
Depois de algum tempo analisando a figura em minha sala, cheguei a conclusão de que ele era atraente. Seu sorriso era perfeitamente alinhado, seus lábios carnudos de forma sutil, tinha a pele bronzeada e seus cabelos eram escuros, o que destacava seus olhos verdes. Tive inveja de suas feições, pareciam perfeitas.
- Bom, deve estar se perguntando o que faço em seu apartamento, principalmente em um momento de descanso pelo que posso ver. - Percebi que ele se referia a camisola.
Eu não me envergonho fácil, mas estava ficando desconfortável.
- Sim, o que faz aqui senhor? Eu sou Victória, e para chegar até aqui o senhor provavelmente já sabia disso, mas quem é o senhor?- Eu perdi totalmente minha postura formal, não gostava de ser tão minuciosamente observada.
- Eu sou André, vim em busca dos seus serviços de ceifadora senhorita .- Ele sorriu de forma ousada, e isso me incomodou.
- Quem me indicou? - Minha voz havia se suavizado.
O homem fez uma pausa para pensar e se acomodou no sofá.
- Sua irmã. Clara te indicou. - Ele disse enquanto limpava os pelos da senhorita Morgana presos em sua camisa branca.
Estava incomodada, minha irmã mal falava comigo, por que ela me indicaria como ceifadora. Não via Clara a 3 anos, ela havia se mudado para os Estados Unidos para prestar seus serviços como médica recém formada.
- Um amigo não está bem, mas tem dificuldade para partir. Ele já sofreu demais no estado em que se encontra, está na hora de descansar. Infelizmente a família dele se recusa a desligar os aparelhos e desistir dos tratamentos, se recusam a deixá-lo ir. Gostaria de saber se não há como fazer com que pareça  algo natural, ele já sofreu demais. - O homem se tornou abatido enquanto descrevia a situação.
Passei por situação parecida 3 meses atrás. Uma menina de 12 anos se encontrava entre a vida e a morte, após descobrir um câncer extremamente agressivo. O tratamento a machucava, e ela já não tinha mais vida. Seu nome era Zarah, e era a criança mais linda que eu já tinha visto. Seus olhos eram de um azul magnífico, ela tinha longos cílios, lábios finos e um sorriso contagiante. Ela vivia com a mãe e a tia, mas a mãe se recusava aceitar sua partida, foi então que a tia entrou em contato. A tia de Zarah, a senhorita Maryan, tentou de todas as formas convencer sua irmã de que era a hora de Zarah se ver livre desse mundo, mas a mulher não aceitava de forma nenhuma essa idéia.
Eu não podia dizer que não entendia a mãe de Zarah, pois eu entendia até demais. Mas as vezes precisamos deixar as pessoas partirem, deixar que elas encontrem a paz sem se importar com o que sentimos. Em certos momentos devemos aprender a priorizar a dor do outro, e esquecer da nossa.
Durante uma tarde em que Maryan fazia companhia a Zarah, eu fui ao hospital para prestar meu serviço de ceifadora. Eu não apoiava a atitude de Maryan, mas tão pouco a julgava.
O quarto de hospital de Zarah era aconchegante, todo decorado com desenhos e brinquedos da garota.Assim que entrei vi uma moça ruiva no quarto de Zarah, e sem dúvida ela era não deste plano.
Maryan estava sentada na cama de sua sobrinha e conversava com ela, Zarah sorria pacificamente e a tia tinha os olhos cheios de lágrimas.
- Olá. - Eu disse, e sorri para ambas. - Eu sou Victória.
- Entre querida, obrigada por ter vindo. - Maryan tremia um pouco, mas era perceptível. Ela era uma senhora de uns 50 anos, mas seu olhar era terno e cuidadoso. Ela possuía cabelos da cor do mel, e era uma mulher um pouco acima do peso, mas isso só a tornava mais acolhedora.
- Oi Zarah. - Eu disse sorrindo para a garotinha deitada na cama. Ela não possuía mais os cabelos, mas era linda, e eu nunca esqueci de seu sorriso.
- Oi tia. - Ela disse fraca, mas sorrindo. - Eu estou nervosa, mas estou pronta.
- Você é muito corajosa, meu anjo!- Eu não pude deixar de dizer, e ela sorriu.
Conversei com as duas por dezenas de minutos, expliquei o processo e ambas assentiam. As duas se despediram com abraços, beijos, lágrimas e risos, e meu coração se partia a cada frase delas.
Zarah se acomodou e fechou os olhos, eu sentei ao seu direito na cama, e Maryan sentou- se de seu lado esquerdo.
- Relaxe. - Eu disse calmamente a Zarah, eu sabia que sua hora já havia passado, e queria de todo o meu coração que aquele ser inocente parasse de sofrer. - Zarah, você aceita minha oferta? Aceita a oferta de uma partida sem dor, sem culpa?
- Aceito. - Ela respondeu em um sussuro, e eu pude ouvir um soluço de sua tia.
Fechei meus olhos.
- Então, eu irei guia-la e ajudar em sua partida. Que o Senhor permita sua partida em paz Zarah, e que seus anjos me ajudem a guia-la. - Trasmiti toda minha energia a ela, e atravessei com ela esse plano, para que ela pudesse chegar ao outro lado.
Em minha visão Zarah estava linda quando se despediu de mim, com um vestido florido e longos cabelos cor de mel, e a seu lado estava a moça ruiva do quarto.
- Obrigada pelo que fez Victória. - Disse a moça ruiva. Ela e Zarah seguiram por uma luz branca e intensa, e eu enfim retornei.
Quando voltei a mim, os aparelhos de Zarah soltavam inúmeros sons desesperados, e a enfermeira corria pelo corredor em direção ao quarto. Maryan chorava mesmo antes da enfermeira desistir da reanimação, e eu estava exausta observando a cena.

- Pretende me ajudar Victória? - Disse André interrompendo meus pensamentos.
- Pretendo.- Eu disse por fim.

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⏰ Última atualização: Sep 26, 2019 ⏰

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