Amar também é deixar ir

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Logo após sair de um tribunal, depois de enfrentar um julgamento que parecia não ter fim, finalmente me vi indo para casa. O caso não tinha sido nada fácil, meu cliente era acusado de inúmeros abusos em seu ambiente de trabalho, e o número de testemunhas contra ele era inimaginável.
Todo o falatório do dia sempre me deixa nervosa, e cansada, muito cansada, e é isso que me faz valorizar ainda mais minha segunda profissão. Bem, não se trata realmente de uma profissão, é mais como uma ocupação já que não cobro pelos serviços prestados.
Eu me dirigi com pressa até meu carro, e ao sentar no banco do motorista desabei, queria ficar ali mesmo, já que o cansaço tomava cada músculo meu. Parei pra analisar meu reflexo no retrovisor, meus cabelos curtos e negros estavam perfeitamente arrumados, e minha pele branca contrastava com a luz da lua que iluminava todo o interior do carro.
Fechei meus olhos por alguns segundos, só até organizar meus pensamentos e, finalmente ir para casa. Enquanto meditava, meu aparelho celular começou a tocar incansavelmente. Eu tenho o péssimo costume de recusar números desconhecidos sem nem pensar, mas depois da quarta ligação do mesmo número eu finalmente comecei a ceder. Decido atender e a voz ao telefone é de uma mulher.
- Alô, é a senhora Victória Fernandes? - Disse a voz meio sem jeito.
- Sim é ela. - Respondi em tom tão seco que me surpreendi. - Com quem estou falando? E o que gostaria?
- Senhora, eu me chamo Milena Do Carmo. Me indicaram seus serviços... - Ela fez uma pausa e respirou fundo. - Seus serviços como ceifadora. Eu pago bem senhora, por favor aceite, eu não sei mais o que fazer. - Ela disse com certa urgência em sua voz.
- Senhora Milena, eu não cobro pelos meus serviços. - Ao dizer isso eu ouvi um suspiro de alívio do outro lado da linha. - Apenas me fale sobre o caso e me diga um local de encontro, e horário.

Após uma longa conversa com Milena, eu já estava a caminho do local de encontro, sem nem ter ido para casa antes. Meu salto estava me matando, mas isso iria esperar. Comprei um lanche no Burger King no caminho, eu precisa comer algo com urgência.
Ao todo, o percurso até o hospital levou cerca de meia hora, sem contar os 10 minutos que tirei para o lanche. Finalmente parei o carro em um estacionamento próximo ao Hospital, e ao descer tentei arrumar minha camisa social branca sem sucesso. Eu estava vestida como uma advogada, e depois de certo tempo em um carro é de se esperar que a roupa amasse. Consegui disfarçar minha saia e minha camisa, ambas amassadas , com meu habitual sobretudo preto.
Caminhei por dez minutos até a portaria do hospital, e mais cinco até chegar ao quarto de número 101. Pude ver por uma brecha nas persianas uma mulher, abatida, sentada em uma poltrona ao lado de um homem em uma cama.
Finalmente bati na porta, e pude ver a moça loira com mais clareza. Seus olhos eram de um castanho claro lindo, e seus longos cabelos loiros e ondulados estavam despenteados. Ela usava calça jeans e um casaco de lã branco. Ao me ver a mulher enxugou os olhos, e se levantou pra me cumprimentar.
- Eu sou Milena, é um prazer conhecê -la!. - Ela se esforçou pra demonstrar animação.
- É um prazer conhecê -la também, como já sabe sou Victória. Lamento muito nos encontrarmos em tal situação. - Não pude disfarçar o pesar em minha voz, até porque, quando toquei a mão de Milena partilhei de seus sentimentos de perda.
Foi então, que pude reparar com detalhes o homem em coma. Seus cabelos eram castanho claro, seu rosto era delicado mas possuía hematomas levemente visíveis. Ele era um homem com músculos definidos, mas nada chamativos. Seus lábios era finos e tornavam seu rosto ainda mais delicado e sereno. Mesmo sem falar comigo, ou olhar para mim Thiago me passou uma paz indescritível.
- Esse é meu marido Thiago, foi sobre ele que falei. - Seus
olhos estavam marejados, e sua voz tinha se tornado trêmula e quase um sussuro.
O olhar de Milena para Thiago me trouxe certa tristeza, porque desde de que entrei no quarto branco e gélido do hospital, percebi que Thiago já não pertencia mais a Milena, tão pouco a este mundo.
Foi então que pude ouvi -lo em um canto do minúsculo quarto.
- Veio me ajudar a ir não é? - A voz dele era calma e serena, mas possuía dor.
Em pensamento respondi a ele que sim, que eu iria lhe dar o presente da liberdade.

Pedi a Milena que ajudasse a me preparar para o processo, e a ajudei a se preparar para o processo de partida do Thiago. Enquanto conversávamos, eu observava Thiago ouvindo cada palavra nossa em um canto.
Após colocarmos a poltrona mais próxima a cama, eu me sentei segurei a mão direita do rapaz. Pedi a moça q pensasse em Thiago com infinita alegria, e que esquecesse do sentimento de perda e do Adeus que estava por vir.
Fechei meus olhos ainda segurando a mão de Thiago, e lhe transmiti ao máximo minha energia, para que ficássemos conectados e eu pudesse guia-lo.
- Thiago.- Eu o chamei em minha mente. - Está na hora, e estou aqui para facilitar sua ida, sem dor, sem culpa... Vc só precisa me dizer se aceita minha oferta, não posso levá-lo contra sua vontade, tão pouco quero isso. - Senti que ele pensava.
- Antes de tudo, diga a Milena que eu a amo, e que irei esperar por Ela onde quer que seja. Diga que a quero feliz, e que ela também merece seguir em frente. Ela me fez feliz até o último segundo, e eu irei ama-lá pela eternidade, até que possamos novamente viver juntos. Sinto muito por estar indo, mas é minha hora. - Ele disse, sorrindo, sereno e de olhos marejados.
Ainda em contato com Thiago, eu transmiti palavra por palavra do que ele dizia a Milena.
- Adeus meu bem! - Ele disse por fim.
As últimas palavras de Thiago ecoaram em minha mente, e finalmente ele aceitou partir com a minha ajuda. Ele se desprendeu desse mundo com alegria, e pode provar de um outro tipo de liberdade. Eu pude sentir sua alegria, sua leveza e em fim sua paz, a paz fora de um corpo imóvel.
- Eu te ajudo nesse momento a ir, te ajudo a se desprender da carne, e que com a permissão do criador e com o meu auxílio, você possa ir em paz. Boa sorte Meu querido. - Eu disse em voz alta, e os aparelhos ligados ao rapaz começaram a parar.
Em minha mente eu o vi, rindo, e agradecendo por estar livre, agradecendo por finalmente ver o "paraíso".
Ao terminar, eu abri meus olhos, estava exausta com o processo e isso sempre ocorre. Milena chorava ajoelhada aos pés da cama.
- Eu te amo, e não vou te esquecer nunca meu amor. - Ela disse em meio a soluços.
- Acabou minha querida, ele está imensamente feliz agora. Não se sente mas preso e não tem mais nenhuma dor.- Tentei acalmar Milena enquanto ia em sua direção. - O amor de vocês, os momentos que viveram, isso não se vai jamais. E te garanto, que as vezes até quem se ama devemos deixar ir.

A ceifadoraOnde histórias criam vida. Descubra agora