Capítulo Quatro: Águas de Março

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Levantei num salto, assustado com um trovão.

Ainda meio atordoado, dei uma olhada no relógio. Eram cinco e meia; não fazia sentido levantar ainda. Era óbvio que não ia dar para fazer absolutamente nada no jardim da Heloísa, portanto, puxei o lençol e me cobri novamente.

De repente, um relâmpago iluminou o quarto inteiro e mais uma vez um estrondo incomodou meus ouvidos.

Virei para o lado com os olhos semicerrados e vi quando o vento arremessou com força uma folha na janela do quarto. A chuva estava pior do que eu havia imaginado.

Perguntei-me como estaria o jardim e sentei-me na cama, meio sonolento, aproximando o rosto da janela.

Apesar de estar embaçada, pude ver Heloísa sozinha lá embaixo, lutando contra a ventania para cobrir as plantas como podia; com caixas de papelão, galões de água vazios ou, aparentemente, qualquer coisa que via pela frente.

Nem mesmo lembrei de pegar um guarda-chuva comigo; não que adiantasse, o vento era tão veloz que provavelmente teria levado-o para longe. Quando dei por mim, já estava metendo a mão na grade do portão e com os pés afundando na lama, correndo na direção dela.

"Deixe isso para lá, Helô!" eu gritei, mas ela nem sequer pareceu ouvir, continuou correndo de um lado para outro de uma maneira quase robótica. Seu olhar estava vidrado, como se ela não pensasse em nada além de proteger o jardim.

Gritei o nome dela algumas vezes, tentando tirá-la do seu transe, mas foi apenas quando eu a segurei pelos braços e a sacudi de leve, gritando "chega, Helô, não adianta!" que ela voltou a si.

As pernas dela cederam e ela começou a chorar desesperadamente.

Eu a segurei e a abracei com força, impedindo que caísse ajoelhada no chão.

Com dificuldade, eu a levei até a casa da minha mãe e a deixei sentada na mesa da cozinha, soluçando, enquanto ia buscar as toalhas.

Quando voltei, minha mãe já estava em pé ao lado dela, acariciando seu cabelo.

– Minha querida, – ela disse à Helô –, eu já te expliquei que chuva não tira a vida, apenas dá. Não tem porquê se desesperar, ainda temos duas semanas...

Heloísa abaixou a cabeça e seus ombros sacudiram de uma maneira que cortou meu coração.

Corri para cobri-la com a toalha.

– Ele não vai voltar... – soluçou ela. – Ele nunca vai voltar para mim porque eu não sei fazer nada direito!

Ela cobriu o rosto com as mãos e eu vi seus ombros sacudirem mais uma vez, em um choro completamente desesperado.

Minha mãe puxou uma cadeira para sentar do lado dela e eu fiz o mesmo, passando o braço ao redor dela e puxando-a para perto de mim.

Ela deitou a cabeça no meu ombro e olhou para a minha mãe, que segurou uma de suas mãos com ternura.

– Um jardim requer cuidado constante, Helô, é uma tarefa para a vida toda. Às vezes, as circunstâncias vão tentar destruí-lo, mas tu nunca deves deixar de amá-lo e de cuidar dele por isso. É uma promessa que deves fazer a si mesma, de jamais desistir do teu jardim. Cada um tem seu próprio jardim dentro de si e não há nada que possa impedir a primavera. Não importa o quão frio é o inverno, é ele que dá as condições para que as rosas floresçam novamente depois. São as pétalas caídas que nutrem as que nascem, num eterno ciclo em que não há nada além de vida.

Helô apertou a mão da minha mãe com carinho e eu afaguei seu ombro, tentando motivá-la.

Depois de se acalmar, ela nos contou mais sobre o ex-marido e o quanto ela havia sonhado que ele voltaria naqueles últimos dois anos.

"Mas talvez seja hora de seguir em frente" ela completou, desviando o olhar para as próprias mãos. "Tudo que quero agora é ver a Malu. Não tenho como mudar de cidade, mas posso fazer ela se sentir em casa quando vier me visitar também."

Aquilo me deu uma ideia. Saí de perto discretamente e fiz uma ligação a um amigo.

No dia seguinte, estávamos os três no jardim de Helô. Minha mãe sentada na cadeira como de costume e Helô e eu dividindo tarefas. Um cavava e o outro plantava.

Quando ouvi o barulho do caminhão se aproximando, virei para Helô e pedi que buscasse um suco para mim porque estava com a garganta seca, já sabendo que ela não se contentaria em me dar um suco que não estivesse fresquinho.

Enquanto ela estava na casa, eu corri para pagar o cara sob o olhar curioso e silencioso de Dona Rosa – posso jurar que vi um sorriso malicioso em seu rosto – e ajudei-o a carregar minha surpresa para Helô até um canto do terreno no qual ainda não havíamos trabalhado, próximo ao lago.

Ela quase derramou o suco quando voltou.

Lá estava Dona Rosa, sorridente, sentada num balanço colorido e eu casualmente empurrando-a.

– Acho que a Malu vai gostar – brincou minha mãe. – Está aprovado!

A Helô riu, maravilhada. Pôs o copo na varanda e correu com um sorriso de orelha a orelha em nossa direção.

Observei-a encher a mamãe de beijos na cabeça.

Meu coração acelerou, admirando o sorriso enorme dela.

– Eu não consigo nem acreditar! Vocês são as pessoas mais incríveis do mundo, a melhor coisa que já me aconteceu!

Ela me abraçou forte e eu retribuí com o mesmo entusiasmo.

Sabia o quanto significava aquilo para ela; ter um espacinho para brincar com a filha. Ela merecia isso.

A Helô era dessas pessoas que estavam tão acostumadas com o inverno, que ficavam desconfiadas quando chegava a primavera. Acho que, como a minha mãe, eu queria ser um pouquinho da primavera para ela, trazer um pouquinho de felicidade para o mundinho dela.

Eu bem deveria ter me lembrado, na primeira vez que segui minha mãe por aquele portãozinho, que ela "jamais dava ponto sem nó". Eu não havia dado a devida atenção quando ela disse que só Helô poderia consertar o jardim, mas que eu poderia ajudar.

E, nossa! Como eu queria ajudá-la com seu jardim!

Desabrochar: Um Conto Sobre O AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora