"8/8/2016
Já estava praticamente amanhecendo, o frio naquela hora era intenso, principalmente naquela parte mais isolada da cidade, apesar de ainda ser verão, esta madrugada excepcionalmente, havia feito muito frio, como se o inverno tivesse chegado mais cedo em Lakestone.
Árvores gigantes de um lado, árvores gigantes do outro, e no meio uma pista de asfalto, nas beiradas da estrada que levava até a cidade, haviam folhas verdes caídas, essa era a paisagem ali. As folhas não deviam ter caído tanto, era verão em Lakestone, mas nada estava normal.
Aquele caminho só era usado por caçadores e por pessoas que possuíam casa na floresta ou perto do lago, mas naquela hora, o amanhecer de um domingo, era raro passar um carro, isso só acontecia algumas poucas vezes durante o dia, sem qualquer frequência certa de horas, e mesmo assim, a maioria das pessoas que passavam ali naquele horário não eram confiáveis. Quase ninguém na cidade era. Todos escondiam segredos.
O silêncio da floresta foi interrompido bruscamente por uma caminhonete velha de cor vermelha que vinha fazendo a curva para entrar na estrada principal, saindo de uma estradinha de terra no meio das árvores, com música muito alta e um senhor de barba branca que vinha no volante cantarolando, provavelmente voltando do seu sábado de caça. Os faróis da caminhonete eram semelhantes ao sol que começava a nascer, possibilitando que fossem vistos alguns raios solares por trás das árvores, como se tentasse usar sua luz para iluminar e apagar o que havia acontecido naquela floresta, na madrugada de 8/8/16, uma data para se esquecer, o dia em que tudo passou do limite, e até o sol entendeu isso, nasceu mais cedo naquele dia, para iluminar aquela floresta escura, mas até sua luz era em vão ali.
Do meio das árvores de troncos grossos saiu uma pessoa, ou pelo menos parecia uma, de longe era difícil ter certeza, pelo estado em que se encontrava, se rastejando até a beirada da estrada, tremendo pelo frio. Mas realmente era uma pessoa, um garoto, branco, magro, alto, comum. O garoto estava todo molhado e apenas usava uma cueca de algum personagem da franquia Star Wars. O senhor que dirigia o carro, Josue, levou um susto ao ver aquele garoto na beira da estrada, freou imediatamente, e ficou parado o encarando, sem saber o que fazer ele piscava várias vezes, seguidas e rapidamente, só para ter certeza de que estava realmente vendo aquilo, que não estava sendo enganado por seus olhos, suas mãos apertavam forte demais o volante. Ele ajeitou seus óculos, estava com um olhar de desespero, e então pegou o cobertor que estava no banco do carona.
O senhor usava um casaco camuflado, bem grosso para o aquecer na madrugada, bermudas e botinas de couro, ideal para a caça. A porta da caminhonete se abriu e Josue desceu correndo com o grande cobertor marrom nas mãos, em toda sua vida nunca havia passado por uma situação assim, mas a verdade é que, naquela estrada, tudo podia acontecer.
Assim que se aproximou do garoto no chão, ele o olhou nos olhos, Josue reconheceu aquele olhar, era de medo, de raiva, de dor, uma mistura de sentimentos que era perigosa, assustadora e digna de pena. Assim que o enrolou no cobertor, imediatamente percebeu o quanto o garoto estava gelado, o quanto tremia, e como sua respiração era lenta, como se lutasse contra o abraço gelado da morte para continuar vivo, e ele de fato fazia isso.
O garoto foi praticamente carregado por Josue, pois se chegou à beira da estrada se rastejando, foi porque não tinha mais forças para andar, não conseguiria ir sozinho até o carro. Assim que entrou na caminhonete vermelha antiga de apenas duas portas, o garoto se encolheu no banco, tentando se aquecer com seu próprio corpo, sem sucesso. O olhar dele era focado no tapete sujo de lama do carro, provavelmente pela vergonha que sentia naquele momento, daquela situação na qual se encontrava. O senhor de expressão cansada, apenas ligou o aquecedor do carro, deu partida e saiu rápido dali. Ele não perguntou nada, e se o fizesse, provavelmente não teria uma resposta, o senhor apenas tirou seu casaco e o entregou ao garoto, que não hesitou em pegar e vestir, mais uma tentativa de se aquecer. O senhor então estendeu para ele um pacote de biscoitos, ele demorou a pegar, mas devia estar com tanta fome, que resolveu não recusar, e comeu cada um como se fosse sua última chance de se alimentar.
Josué foi então surpreendido por uma voz rouca, falha e baixa, que apenas exclamou um "obrigado" antes de voltar a devorar os biscoitos.
Na cabeça daquele senhor experiente de barba branca, mil perguntas o questionavam. "Quem é esse garoto?" "Será que sofreu um acidente?" "O que aconteceu com ele?" "Estava sozinho?" "Mora na cidade?". Inicialmente, ele achou que fisicamente o garoto não tinha ferimentos, mas só agora ele havia percebido que o seu braço sangrava, que ele tinha um corte no joelho e outro em sua testa, onde o sangue já estava seco.
— Você estava sozinho, filho? Tem mais alguém ferido?
Aquele garoto apenas deu de ombros, indicando que não havia mais ninguém. O sangue sujava seu corpo branco e molhado, mas o pior era o vermelho que sujava a alma daquele garoto, que ficou para sempre marcado por aquela madrugada. 8/8/16.
A imagem daquele senhor também era de dar pena, cabelos grisalhos, barba branca e olhos cansados pela noite acordado, aqueles olhos que estavam atrás das lentes do óculos, e que agora além de cansaço também demostravam dor, que estavam vermelhos, perto do ponto de chorar, somente por ver um garoto que ele nem conhecia, mas que machucou seu coração pela situação em que se encontrava, o que aquele senhor não imaginava, era o quanto aquela noite o atormentaria, e o quanto aquela imagem se repetiria em seus sonhos, tornando o ato de dormir uma tortura dali para frente.
Josue seguiu viagem, não sabia ao certo para onde ir, só o que ele sabia, era que não tinha qualquer conhecimento do que havia acontecido com aquele garoto, naquela madrugada, e essa falta de conhecimento o assustava, mas não o assustava tanto quanto ele teria ficado assustado se tivesse continuado ali, parado no exato local onde resgatou aquele pobre rapaz.
A caminhonete vermelha já se tornava apenas um ponto no asfalto, mas aquela história estava longe de ser deixada para trás. Em meio as árvores, duas figuras haviam se escondido ao ver seu Josue, e agora que o homem já havia partido, essas duas pessoas começavam a se revelar, saindo de trás das árvores em direção a estrada. Uma dessas pessoas parecia assustada, com medo, a outra parecia com raiva, mas as duas pessoas estavam preocupadas, uma mais que a outra.
— O que vamos fazer? — Perguntou a pessoa assustada.
— Não tem nada a ser feito. — Respondeu a outra.
Estavam em pé bem no lugar onde há dois minutos aquele garoto esteve de joelhos, estavam em pé sobre as gotas de seu sangue que haviam pingado nas folhas verdes, e então viraram de costas, voltando para a floresta. Mas o que aquelas pessoas não tinham em mente era o quanto 8/8/16 mudaria suas vidas. O quanto mudaria aquela cidade."
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HK O Corvo
Mystery / Thriller"Encontrar com o corvo será sempre um sinal de mau agouro" Lakestone, uma pacata cidade do interior se vê submersa em medo, horror e sangue quando o corpo de uma professora é encontrado sem vida em um dos corredores da escola, com seu rosto complet...