1969
Pela janela, o sol cai como um animal ferido anunciando o fim da tarde. Janis encara a calçada com a expressão sonhadora que sempre carrega, perdida entre um pensamento e outro. Os últimos raios alaranjados do dia, agudos, atravessando as cortinas vermelhas entreabertas fazem seus olhos cor de mel parecerem amarelos. Abe só consegue pensar no quanto ela é bonita. Ele descruza a perna e encosta o solado da sua bota no tapete pra inclinar a cadeira de madeira pra frente, com as pernas traseiras saindo do chão, e assim olhá-la mais de perto. Ela tem o volumoso cabelo castanho caindo sobre o rosto e está sentada sobre a cama de solteiro com as pernas cruzadas uma sobre a outra, como se meditasse. Lá fora, as crianças do bairro correm barulhentas e alegres em volta de um labrador com os pés nus nas folhas secas do Outono.
Janis se distrai fácil. Parece vulnerável e decidida ao mesmo tempo. Meio triste com as coisas que poderiam ter sido e não são, meio brava com as coisas que são e não deveriam e meio feliz com as coisas que ainda podem ser. Tudo ao mesmo tempo. Abe a enxerga como um paradoxo e um fenômeno, mas não sabe como dizer. Só sente. Ela demora até notar o rosto dele perto do seu, com um sorriso abobalhado que ela acha super sexy. Então se inclina um pouco pra beijar o canto de sua boca e ele não segura um risinho rouco.
- Você tá muito gata assim, sabia?
- Assim como, toda descabelada? - Ela ri com uma careta enquanto sacode o cabelo pra cima com as duas mãos. - Sério, homem, eu nem escovei o cabelo hoje!
- É um caso raro de beleza natural. Deixa eu ver, ah... - Ele imita os gestos de Janis, bagunçando os cabelos dela, gargalhando. - Agora sim tá horrorosa, ugh! Jesus!
- Idiota! - Ela o empurra pra trás pelo peitoral, suavemente, sorrindo.
- Tô brincando minha gata... - Entre um suspiro para tentar ficar sério e outra risada. - Parece um leão com uma juba imensa!
- Ei!!! - Ela finge ficar ofendida, mas imita um leão, com um pequeno rosnado.
Eles ficam em silêncio por um momento. Agora é Janis que encara Abe, sua franja escura sempre reluzindo de tão preta. Os olhos dele são acinzentados como um dia nublado e ele fica meio pálido mesmo na sua camiseta colorida da Jefferson Airplane. Abe conhece o melhor do rock'n'roll, ele até tocou guitarra em um festival uma vez. Janis foi uma das únicas que achou que ele realmente mandou bem, mas isso basta para ele. Às vezes ela tem essa impressão sem justificativa de que em algum momento vai se dar realmente mal por gostar tanto dele, mas não pode evitar. Vale a pena, ela pensa.
- Hmm... Aquele baseado me deu uma fome danada, será que a sua coroa vai demorar a colocar o jantar?
- A gente comeu um hambúrguer antes de vir pra cá, Abe!!! Ok, esquece, eu também tô faminta.
- A erva é sagrada mas cobra o preço... Em quilos de comida!!! - Ele fez uma careta e um gesto de espanto.
- Hahaha, Abe! Tive uma ideia, chega de conversa mole, vamos bailar! - Ela se levantou em um sobressalto.
- Hm, agora?
Ela assente com a cabeça e um enorme sorriso de empolgação enquanto abre a gaveta da pequena cômoda branca ao lado da cama. Tira de lá um vinil do Jimi Hendrix, Axis: Bold As Love. Na capa psicodélica se vê o Jimi, o maior guitarrista de todos os tempos, como diz o Abe, como um avatar entre vários outros de divindades hindus e um disco solar onde se lê o nome. Ela ergue a agulha do toca discos encima da cômoda para ajustar o vinil e coloca pra rodar. Abe se levanta e corre, saltando com suas enormes botas pretas através do carpete amarelo que cobre o piso até alcançar Janis. Ele a agarra pela cintura e a puxa até o meio do quarto, começando a requebrar os quadris.
- Eu fico feliz que esteja ouvindo o disco que eu te comprei... DEUS SALVE JIMI HENDRIX!!!
- O MAIOR GUITARRISTA DE TODOS OS TEMPOS!
- COROA!!! O JANTAR TÁ QUASE PRONTO? - Ela grita enquanto ensaia uma dança de subir e descer dos braços no espelho da penteadeira, na lateral do quarto.
Abe faz Janis girar através do quarto e flexionando os joelhos pula para dançar encima da cama. Ele está chacoalhando a cabeça e ela acompanhando debaixo quando ouvem passos no corredor. A música para. O Sr. Lorenz está na porta, ainda segurando a agulha do toca-discos entre os dedos de uma mão e dispensando um olhar de desaprovação para a ilustração do vinil. Ele tem o cabelo grisalho com entradas acentuadas e um gigante bigode. Sua constante expressão de desgosto faz suas rugas se acentuarem e que pareça mais velho do que realmente é. Ele abre a boca, mas aperta a gravata azul marinho e ajeita o óculos de aro grosso antes de começar a falar, intercalando os olhares entre o cinzeiro cheio de cigarros na mesa à altura da janela, as manchas das botas sujas de Abe no carpete e na roupa de cama florida e a mini-saia de Janis:
- Eu posso saber o que significa isso?
- Cof... - Abe limpa a garganta e desce da cama antes de falar, envergonhado. - Nós estamos só curtindo um rock, Tim... Tudo beleza?
- É Sr. Lorenz para você. Curtindo um rock, ãhn...? Besteira.
- Jimi Hendrix é um grande guitarrista, senh...
- Já não fazem mais música como antigamente! - Diz o Sr. Lorenz, impedindo que Abe termine. - Posso saber porque o senhor estava curtindo um rock encima da cama da minha filha a essas horas, Sr. Harper?
- A mamãe disse que ele podia jantar com a gente hoje! MÃE!!! - Protesta Janis, braços cruzados em sua blusa de franjas, vermelha de raiva.
Ouvem-se os passos pequenos e apressados da Sra. Lorenz em seus sapatos de salto baixo através do corredor. Ela aparece pequena perto do marido, expressão consternada. Traz os cabelos castanhos desgrenhados em um coque e o vestido verde água coberto por um avental manchado. Vem da cozinha segurando uma colher de metal.
- Qual é o problema, querida? Não entendo porque você e Abe estão sempre com tanta fome... Bom, coisa de jovem. - Ela dá um meio sorriso olhando para o marido corpulento.
Abe e Janis se entreolham e seguram o riso.
- O jantar está quase pronto, certo, querido?
- Certo, volte pra cozinha. Eu não quero saber o que sua mãe disse, Janis! Eu sou o chefe dessa casa e eu não quero esse encrenqueiro aqui!!! - O Sr. Lorenz diz bufando.
- Querido... - A Sra. Lorenz, franzindo o cenho.
O marido dispensa um gesto de repreensão com o braço peludo, onde brilha um pesado relógio metálico. Ela fita os jovens por um instante com um olhar de culpa, desliza a mão desocupada pelo ombro do marido e se retira, o batucar dos seus sapatos ecoando no caminho de volta para o jantar. Daí a uns instantes se escuta o barulho dos pratos, talheres e copos sendo postos na grande mesa de jantar dos Lorenz.
- Relaxa, coroa... Que estresse, tô saindo. - Abe responde apanhando sua jaqueta de couro na mesa em frente à janela. - De boa gata, não quero criar problemas pra você.
Abe beija suavemente a testa de Janis, ajeitando seu cabelo com uma das mãos. Passa pelo Sr. Lorenz rapidamente, mas sem poupar um olhar fixo de desafio. A ele não diz nada, dá boa noite a Sra. Lorenz do corredor e sai batendo a porta da frente.
- Abe, espera!!! Eu vou com você. - Grita Janis, correndo para a porta da frente com um sorriso aventureiro.
- Olhe aqui, mocinha! Eu te proíbo! Se sair por essa porta, vai ser a última vez. - Brada o Sr. Lorenz, andando meio caminho até a filha com as sobrancelhas erguidas como quem duvida.

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Três Torres
AventuraJanis Lorenz, uma jovem vivendo no auge da geração do paz e amor, começa a ser perturbada por visões de uma guerra futura e da destruição do mundo enviadas por uma figura misteriosa chamada O Hipnotista. 50 anos depois, a vida adolescente de Jake Ca...