Fim do mundo

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1969

 "Inspira e expira", Janis escutava Abe repetindo ao longe. Ele simula as inspirações e expirações profundas que ela deve fazer segurando gentilmente seu rosto e sua nuca, e ela repete com dificuldade. É quando começa a sentir um formigamento atravessar os membros e os órgãos do corpo, como se suas partículas estivessem se acelerando numa crescente. Uma corrente elétrica vai percorrendo seu corpo e fazendo-a ter a sensação de se tornar maior do que ele, de extrapolar lentamente os limites da própria carne. Ela tenta manter sua atenção na respiração e no banco do carro, mas começa a se sentir puxada para fora do corpo com mais força quanto maior é a sua resistência. De súbito, ela se enxerga elevada acima do próprio corpo, imóvel no banco da picape onde lhe presta assistência um Abe de semblante preocupado. 

 Vai se sentindo cada vez menos estranha naquela condição desconhecida e desbravando o espaço em volta. Parece de uma densidade diferente, como se ela flutuasse em um ar denso, repleto de fluidos. Vai mexendo as mãos, os pés, os braços, as pernas, a cabeça... E começa a ganhar altura. E velocidade. Repara de repente em um cordão fino, de matéria luminescente, que parece ligá-la à matéria a partir do ventre dos dois corpos. Flutua através da calçada cheia de folhas secas para o jardim, onde observa entristecida as gardênias esmagadas pela figura que lhe perturbara. Ultrapassa sem dificuldade as paredes pintadas com desenhos um tanto rudimentares e frases de canções.  No hall de entrada, a gatinha da casa, Mescalina, salta insistentemente sem conseguir alcançá-la, com um miado agudo. 

 A altura da sala, entre os velhos e empoeirados sofás que ninguém sabe se foram levados por alguém ou se sempre estiveram ali, Janis observa risonha alguns amigos de Abe que se dividem entre beijar uns aos outros e passar um baseado. De repente, começa a sentir que perde o controle. Está sendo sugada para cima como que através de um duto de ar, vendo os telhados das casas da parte baixa da cidade, as copas das árvores, os carros lá embaixo, as pessoas nas ruas e calçadas meras formiguinhas. Sua cabeleira castanha balança como se beijada pelo vento.

- Você é Janis Lorenz? - Uma voz amplificada, parecendo saída de lugar nenhum, mas enchendo todo o seu "crânio". Soava rouca como um grasnado de corvo ou uma pedra rolando desfiladeiro abaixo.

- Hm, quem é você?! Deus? Eu estou morta???

- Deus, huh? Hahah, digamos que ele e eu não nos damos muito bem. 

- O... O Di... Diabo? - Janis pergunta gaguejando.

- Sem mais perguntas tolas. Me chamemos de Hipnotista por enquanto, sim?

- Tá bom...? Eu quero voltar pro Abe! Me leva de volta! 

- Você vai voltar. Quando eu disser que é a hora. Em que ano nós estamos?

 - 1969???

- Ah, 1969! Pois eu quero lhe mostrar o Futuro... - O Hipnotista encerrava com uma risada que soava como galhos secos quebrando.

 Janis tentou esboçar uma reação mas foi surpreendida pelo aumento da velocidade da subida. Sentia algo análogo à vertigem, vendo a cidade desaparecer em uma colcha de pequenas cidades, fazendas, estradas, florestas... Breve via os Estados Unidos se apequenando no bloco das Américas, o Hemisfério Ocidental...  Era a coisa mais bonita que já vira ou imaginara, mas pressentia algo horrível que a chamava para repovoar seu corpo. Sentia a presença de Abe em algum lugar, com seu "inspira e expira" incansável. Aquelas porções gigantescas de terra, com suas planícies e planaltos iam ficando distantes na agudez azul do oceano. Ao sair da Terra, Janis exala de surpresa. É magnífico. Milhões de estrelas queimando na escuridão do espaço. Planetas grandes, pequenos, luas, a indescritibilidade do Sol, cometas, os minúsculos satélites construídos pelos humanos em órbita. A velocidade aumenta ainda mais. 

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⏰ Última atualização: Oct 07, 2019 ⏰

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