Richard
A banda tocava a bordo do navio chileno Almirante Cochrane, animando a massa de convidados a bailarem a polca.
Eu já estava acostumado com um certo luxo e requinte pelos lugares por onde havíamos passado, mas em pé a um canto do amplo terraço, não pude deixar de admirar as belas lanternas venezianas alimentadas por luz elétrica. Ao que ouvira dizer, algo pouco incomum naquela cidade do Rio de Janeiro de 1889. Bandeirolas verdes e amarelas, simbolizando as cores do Brasil e vermelhas e azuis, simbolizando as cores do Chile oscilavam com a brisa refrescante da Baía de Guanabara.
Toda a elite brasileira se reunia naquela Ilha dos Ratos, – um nome um tanto curioso e para o qual eu não encontrava explicações – milhares de pessoas, de fato, e mais desembarcavam a cada momento, portando os trajes mais finos e requintados. Ouvi dizer que por dias não havia mais vagas nos cabeleireiros da cidade ou tecidos finos para confecção de vestidos. O baile era oferecido pelo então Visconde de Ouro Preto em homenagem ao Chile no suntuoso Palacete Alfandegário – não duvidava haver algum viés político na celebração, mas aquilo pouco me interessava naquela noite. Meu objetivo ali era outro. Naquele 31 de outubro, o véu entre-mundos estava mais fino.
Deixei a taça vazia sobre a bandeja de um garçom e esquadrinhei a multidão tentando encontrá-la. Por entre vasos franceses caríssimos e flores brasileiras coloridas e alegres, circulei entre os convidados intimidando-me ao encontrar alguns pares de olhos femininos a me encarar. Entre sorrisinhos e comentários, tentei me afastar de alguns grupos de jovens moças, buscando passar desapercebido e detestando, pela quinhentésima vez, aquela ideia de atender ao baile imperial como um convidado de honra. John Doe, importante comerciante inglês, fora o nome escolhido. Sorri mais uma vez ante à brincadeira. Só podia ter sido ideia dela. Preferia mil vezes estar presente ali como um garçom ou serviçal. Combinava melhor comigo.
Então eu finalmente a vi, do outro lado do salão, de braços dados com um importante funcionário do governo local, Tenório de Sá. Ela era a sobrinha estrangeira em uma breve visita à cidade. Trajava um discreto vestido azul marinho de corpete bem ajustado bordado em vidrilhos e mangas de renda da mesma cor. Os cabelos escuros estavam presos por um penteado no alto da cabeça e alguns cachos emolduravam-lhe o rosto de olhos redondos e escuros. O sorriso amplo iluminava-lhe as feições enquanto conversava com um casal à sua frente. Quem a via assim, uma legítima dama de sociedade, jamais imaginaria o que ela realmente era.
Lembrei-me de meses atrás quando nos conhecemos, em Londres, em mais uma manhã cinzenta e úmida tão comum em minha terra natal.
Caminhava ao lado de meu pai pela rua enlameada enquanto uma garoa fria e deprimente caía ao nosso redor. Carroças, cavalos e gente disputavam cada pedaço de chão quando finalmente descemos uma escada estreita ao lado de um dos prédios cinzentos e meu pai bateu de forma peculiar e cadenciada na porta de madeira escura. Uma portinhola se abriu e, tirando a luva da mão direita, meu pai mostrou o anel grosso de ouro com o símbolo de uma estaca cravada em um coração gravado. A portinhola se fechou e em seguida, nossa entrada foi liberada.
Entregamos nossos casacos ao porteiro, um homem baixo e com uma fisionomia soturna, que meu pai apresentou como sendo Sr. Graham e que nos entregou dois mantos escuros.
— Muito bem-vindo, senhor Thomas — disse o porteiro, com um aceno de cabeça — Este é seu filho?
— Sim, senhor Graham. Este é Richard.
Estendi a mão para o homem que me mediu de alto abaixo e sem dizer uma palavra, nos deu as costas. Olhei para o meu pai e ele deu de ombros. Talvez aquela fosse uma atitude comum para a terceira geração de porteiros da Ordem.
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De Amor & Sombras
Short StoryRio de Janeiro, 1889. Toda a nata da elite carioca se reunia em um dos bailes mais disputados da corte imperial. Entre vasos franceses raros e muita fartura, enquanto os convidados admiravam a mais nova tecnologia - lanternas venezianas alimentadas...