Capítulo 2

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Evangeline

— Quanto tempo mais teremos de esperar?

— Calma, Evangeline. Tudo na vida requer calma.

Olhei para meu tio acendendo tranquilamente seu cachimbo, apoiado na amurada e confiando o bigode. Como ele podia estar tão calmo? Já passava das três da manhã e nada havia acontecido. Os saltos do sapato pareciam cravar em meus calcanhares, o espartilho quase me deixava sem ar, os brincos pesavam nas orelhas, enfim, tudo me incomodava. Até a estaca de madeira presa à minha coxa parecia queimar a pele. Vigiávamos as moças, atentos à menor aproximação, mas todas as suspeitas restaram infundadas – meu estoque de água benta para derrubar acidentalmente nos casais mais entusiasmados, estava no fim. Nenhum sinal de vampiro.

Passeei meus olhos pelo terraço e não o encontrei. Olhei com mais atenção e, não, não havia nem sinal de Richard. E se ele estivesse com alguma moça? "Que ridículo, Evangeline! Richard jamais deixaria de cumprir uma missão para flertar por aí!", me repreendi em pensamento. Então me lembrei dos olhares interessados e dos cochichos nas rodas por onde ele passara e outra vez senti as entranhas se contorcerem. E como poderia ser diferente? Richard era um homem muito bonito, elegante e discreto com seu fraque escuro. Gostava de observá-lo enrrugar a testa quando estava concentrado ou da forma como sorria meio de torto quando achava graça em alguma coisa. Eu não sabia dizer onde ou como eu havia me apaixonado por ele, mas mantinha o sentimento preso como um pássaro a se debater em uma gaiola. Não poderia deixa-lo sair sabendo que não era correspondida. Suas ações e gentilezas para comigo se deviam unicamente à relação profissional que mantínhamos. Ele progredira. Na verdade, eu já achava há muito tempo que ele podia deixar de ser um assistente para se tornar um caçador, mas temia o momento em que nos separaríamos.

— Titio, viu o Richard?

— Não... e já há algum tempo. — Meu tio sorriu soltando uma baforada. — Talvez tenha encontrado um pedaço de mau caminho por aí.

Bufei sem sequer responder e saí à sua procura. Ele não estava em nenhum lugar da festa. Titio também chegou à mesma conclusão e ao nos olharmos, um arrepio gelado subiu minha espinha. E se...

— Qual é a probabilidade de Richard ser virgem? — A pergunta veio de meu primo, Henrique, fazendo-me corar ante o pensamento...e o que se seguiu a ele.

— Vejam o que encontrei no caminho do píer — Armando, um outro membro do Ordem se aproximou, trazendo o lenço com as iniciais de Richard bordadas.

Voamos para o píer e após abordar um dos barqueiros, conseguimos a informação que precisávamos: Richard havia deixado a ilha na companhia de uma mulher chamada Lucille Russeau, uma francesa chegada a pouco mais de um ano à cidade.

Armando e meu tio resolveram permanecer na festa, caso esta fosse uma pista falsa. Já Henrique e eu, deixamos a ilha com o barqueiro a toda velocidade.

— Uma vampira! Como não pensamos nisso antes? — meu primo sussurrou para mim enquanto nos escondíamos atrás de uma das colunatas da cripta localizada na igreja de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé.

Lucille estava a poucos passos de nós, sua silhueta sombria iluminada pela luz amarelada das tochas ao redor. Ao centro, e no chão da cripta, estava um Richard imóvel e de olhos fechados.

— Será que ela o matou?

— Pare de falar bobagens, Henrique! É claro que não!

Um cântigo estranho e sinistro preenchia o ar vindo da vampira que, segurando uma adaga de lâmina brilhante, se preparava para cravá-la no peito de Richard. Logo ao lado dele, um portal de brilho azulado começou a surgir por onde braços ressequidos se esticavam em um grunhido quase animalesco.

Henrique e eu nos olhamos; ele, fazendo o sinal da cruz antes de avançarmos para a vampira. Com um golpe, ela nos jogou para o outro lado do salão. A luta seguiu de forma violenta e por vários momentos, achei que perderíamos. As mãos esquálidas quase tocavam Richard quando consegui tirá-lo, ainda desacordado, de perto do portal. Por fim, meu primo e eu a imobilizamos e ele atravessou a estaca em seu coração. Em segundos, a vampira virou cinzas e o portal se fechou.

Henrique, escorado à parede, deixou-se deslizar até o chão.

— Estou bem. — disse enquanto eu rasgava um pedaço de meu vestido e o pressionava contra a ferida aberta em seu ombro. — Vá cuidar do seu amor.

Franzi o cenho e ele me sorriu de lado, fazendo-me rir também. Corri até Richard e me ajoelhei a seu lado, chamando-o.

— Não, por favor, não faça isso comigo, Richard. Volte! Volte para mim!

Eu mantinha seu rosto querido entre minhas mãos enegrecidas e fétidas pelo sangue da vampira, olhando-o com crescente preocupação. E se ele morresse?

— Ah, Deus, não...não o tire de mim. Pouco me importa por quem ele seja apaixonado, só o deixe viver...

E em meio as lágrimas, eu me inclinei e o beijei. Por muito tempo havia sonhado em sentir seus lábios contra os meus e, de forma inesperada, me senti sendo puxada em sua direção. A boca inerte, agora se movimentava de forma doce e cálida contra a minha. Um beijo doce em meio às lágrimas salgadas. Senti quando suas mãos geladas envolveram meu rosto e um sorriso surgiu.

— Sonhei tanto tempo com isso. — Richard mantinha os olhos semi cerrados, encarando-me de uma forma que aquecia todo meu interior.

— Mesmo? — indaguei, um tanto encabulada.

— Desde o primeiro dia... minha heroína. — Posicionando a mão sobre minha nuca, Richard puxou-me uma vez mais para si e eu...não resisti. 


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