I
Há muitas histórias que quero contar para você, caro leitor, mas há uma em especial que talvez possa gostar. Não é feliz, só para constar, mas o máximo que posso dizer é que não vai te emburrar. Aconteceu bem assim, numa terra quieta e distante na península ibérica, provavelmente não tivera nascido ainda, mas talvez seus entes queridos já viviam quando a tragédia teve sua catarse.
Antes de você, mas não de mim, houve uma guerra que ceifou tantas almas quanto a morte, eu posso dizer que você nunca deve ter visto uma de perto. Assim eu espero, mas para ajudar sua imaginação eu peço que pense em um fogaréu atravessando a pradaria já escurecida, ominosa, fumaça subindo como almas, homens, pais, filhos amontoados como pequenas pedras. Cadáveres fardados que iam substituindo as plantações, o terror quente e ao mesmo tempo morno, que vai perdendo vida até que finalmente se torna azul. Era assim e foi assim, meu caro leitor, mas não se entristeça ainda, ainda há muito o que contar.
A carnificina manchava as paisagens idílicas da pequena Espanha com um púrpura violento, havia um crepúsculo eterno que se voltava sobre o céu daquele belo lugar. Você deve estar se perguntando qual o motivo de tanta crueldade, mas é difícil de explicar, meu caro. Homens vis pensavam que sabiam o que era melhor para a Espanha e assim atacaram a República, instaurando o caos completo por todo o território espanhol. O caudillo Franco foi enforcando as cidades com seus exércitos a cada dia que passava, encurralavam-nas feito gado e iam agarrando todas que avistavam, deixando apenas um rastro desmantelado para trás. Você pode me perguntar "Porque me contas isso? Até agora só me contastes tristeza e sofrimento!", apazigue seus ânimos, meu caro leitor, você ainda não conheceu o herói dessa história.
Dia após dia, homens eram levados para o prelúdio fatal da batalha, mães escondiam seus filhos dentro de suas casas pois daquela vez não havia sangue de cordeiro para por nas portas. Os primogênitos iam e nunca mais voltavam, sair pela porta era um ato funerário e perigoso, todos viviam no medo enquanto soldados marchavam com suas baionetas. Mesmo sendo cruel, mesmo sendo vil, Fidel sentia que aquilo nunca iria lhe alcançar, na verdade sua cabeça estava cheia de planos, tão jovem que sentia que sua vida fosse infinita.
Era novembro de 1937 em Segóvia, o inverno congelava até os mais fortes, mas não emplacava o entusiasmo de Fidel que amanhecia antes da alvorada. Seu aniversário seria em alguns dias e ele mal esperava para completar vinte anos, quando iria finalmente para Paris estudar belas artes. Ele desceu as escadarias cheio de viço e vontade de pintar algo novo, ele estava otimista de que sairia algo bom. Passou primeiro pela cozinha, cumprimentando as cozinheiras que logo abriram um sorriso ao ver o rapaz.
— Garoto, não corra tão rápido! Lembra o que a Sra. Domitila disse? — Maria José exclamou apontando lhe uma colher de pau ainda cheia de mingau quente.
— Opa! Lembro sim, não correr para não quebrar nada, não esquecerei!
— É melhor mesmo, desse jeito não irás para a cidade das luzes — Lourdes advertiu como uma boa conselheira, ela sabia que Fidel esperava por isso por bastante tempo.
— Não me jogue mau agouro! Até mais!
— Ah, esse menino — as cozinheiras respiraram em uníssono, mas com risos tímidos.
Fidel havia ficado tão grande em pouco tempo que elas pensavam que o rapaz ainda se comportava de forma pueril demais, era talvez uma verdade muito grande para se falar alto. Seus pais, Domitila e Ignácio Almodóvar, eram de famílias nobres e detinham muita fortuna e ouro, mas Fidel fora criado pelas costureiras, pelas cozinheiras e pelas faxineiras, ele tinha várias mães que criaram aquela figura gentil e ingênua que percorria o grande casarão de madeira antiga. Nada podia abalar ele, só seu rosto era de porcelana, sua alma era de ferro, era comumente chamado de matador pelo seu pai mesmo Fidel odiando a luta com touros. Era difícil, com certeza, enfraquecer a iluminação daquele menino, mas não se engane caro leitor, a história do nosso herói não é bem como você imagina.
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MURCIÉLAGO
Short StoryEspanha, 1937. A guerra civil se alastra pelo país e um jovem rapaz chamado Fidel é forçado a lutar no exercito franquista. Mesmo no terror da batalha, ele acaba por fazer amizade com um prisioneiro de guerra que guarda um segredo obscuro.