capítulo único

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  Eu tinha treze anos quando vi Vince pela primeira vez. Era primavera de 1836 e as ruas não passavam de um misto de lama e flores.

  Coloquei os olhos nele na igreja perto da taverna, onde passava todos os domingos cantando no coral, Vincent apareceu num dia qualquer, o sol brilhava pelas vidraças e a igreja ficava insuportavelmente quente. Foi seu tio quem o trouxe, um garotinho emburrado na sua melhor roupa de domingo, os sapatos até brilhavam. Cheirava a panquecas e mel. Ele foi deixado com as outras crianças e negou a se juntar ao coral, pegou uma das bíblias sobre o piano e sentou-se longe de todos, eu sabia que ele não estava lendo porque virava as páginas a cada dez segundos.

  Eu me apaixonei por Vincent Willians quando senti meu coração batendo contra as costelas e tentei esconder o rosto sardento e vermelho por trás das tranças.

  Porque Vince tinha algo dentro de si que atraía qualquer uma.

  Não eram os olhos azuis escuros como o mar a meia-noite, que mal molhava os pés e ao mesmo tempo te afogava. Nem os lábios delicadamente desenhados, como duas pétalas de uma flor de cerejeira, que com duas ou três palavras e um sorriso de canto enlouqueceria qualquer mulher santa. Muito menos o rosto esculpido adornado pelo cabelo negro, o contraste perfeito entre o azul dos olhos e a escuridão dos fios.

  O que importava em Vince não eram os olhos, mas o olhar. Não os lábios, mas as palavras. Não o rosto, mas nas coisas que ele te fazia acreditar.

  Havia uma certa ironia afiada e doce dançando por trás de seus cílios, um fantasma cor de prata que o faria ir do sarcasmo a doçura em segundos, e da doçura a luxúria mais rápido ainda. Seus olhos conspícuos, a primeira coisa a se notar naquele rosto moldado por Deus, dois orbes azuis encharcados por um humor ácido que fez dezenas de saias levantarem sozinhas. Vince era áspero e suave feito a pluma de uma ave-do-paraíso. Com seu leque de frases decoradas que funcionavam com qualquer uma, era a viagem completa do céu ao inferno.

  Nos tornamos amigos ainda no coral e eu parei de frequentar o estudo da Bíblia. Vince e eu nos encontrávamos na porta da igreja e saíamos de fininho enquanto os outros estavam ocupados, o parque tomou vários de nossos dias naquele ano, com seus bancos de madeira em frente ao lago, onde podíamos arremessar pedras e vê-las afundando. Foi nessa época que descobri a maciez dos dedos de Vincent.

  Suas palmas suadas coladas nas minhas e dedos entrelaçados as escondidas, as vezes minha mão procurava a dele e eu percebia que ele também estivera me procurando. Não passamos de um enlace de dedos por muito tempo, até que isso não fosse mais o bastante para abafar o fulgor nas minhas entranhas.

  - Tem um lugar no fundo da igreja - Vince disse num domingo, os olhos longe dos meus. - Ninguém vai até lá.

  - E por que iríamos?

  - Tenho algo para te mostrar.

  A ideia de ficar a sós com Vincent despertou algo desconhecido em mim, uma fome secreta e ébria, algo que eu via nos olhos de meu pai em algumas noites, enquanto ele passava os dedos pelo pulso de minha mãe. Só não sabia o quê.

  Eu queria negar, me afastar de Vince e correr para me confessar, rezar quantas vezes fosse necessário para apagar a fome por baixo de minhas costelas, o padre nos alertava sobre isso. Chamava de pecado da carne, e pecar sempre fora um dos meus medos. Mas Vincent tinha aquela coisa no olhar, aquele veneno inebriante que não te empurrava até o abismo mas te convencia a pular. O fantasma cor de prata.

  Então eu aceitei, e fui beijada pela primeira vez.

  Nos fundos de uma igreja, com seus lábios tão apertados contra os meus que chegava a doer e seus dedos correndo sobre o tecido da saia. Meu peito queimava, o coração batendo tão rapidamente contra as costelas que talvez Vince o estivesse sentindo, um tambor dentro do peito, e se era um pecado, então eu me condenaria.

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