Marido e Mulher

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Ela era uma mulher quase bonita, discreta. Alta, curvilínea, nem gorda nem magra. Os cabelos ruivos muito cheios já começavam a mostrar os sinais da idade, desbotando aqui e ali. O rosto era permanentemente rosado, a pele muito branca herdada de seus pais holandeses não era feita para suportar o sol do litoral cearense. Os olhos, cinzentos, eram submissos, fugidios, contornados por olheiras de noites insones e discretas rugas de quando sorria para as crianças. Quase nunca saía de casa – a casa que, como ela, era muito branca, com telhado vermelho contornado de azul e preto e varandas discretas. Morava num sobrado numa rua pouco movimentada de uma cidadezinha praiana perto da fronteira do Ceará com o Rio Grande do Norte e só punha os pés na calçada para levar os filhos para passear ou para ir ao mercantil da esquina. Não tinha empregada. Fazia tudo em casa, e fazia bem, com zelo extremo. Lavar, passar, cozinhar, criar os filhos. Não que não pudesse ter empregada: não queria. Preferia manter a vida da porta para dentro de casa apenas entre ela, os filhos e o marido.

O marido... da porta para fora, rico médico exemplar, cidadão de bem, provedor do lar. Dia desses se envolveu em um acidente na BR e pagou todo o prejuízo que sua Mitsubishi causara à traseira de uma Toyota.

Da porta pra dentro, no entanto...

Filho de portugueses, neto de italiano, era baixinho, rechonchudo, de bigode farto e pele meio morena. Vinte anos mais velho que a esposa. Tinha o temperamento terrível herdado dos homens da família e descontava todas as insatisfações na mulher e nos filhos. Entre surras, estupros, ameaças constantes e humilhações, comportava-se mais como um carrasco do que qualquer outra coisa.

E ela aguentava.

Às vezes, após uma noite de agressões, refugiava-se em um dos dois banheiros do segundo andar, dentro de um tina ovalada feita de madeira que lhe fora dada de presente de casamento pelo esposo e trazida da Europa por um turco charmoso e conhecido pelo comércio local, que desde então se tornara seu amante. Ele jurara matar o desgraçado que ela chamava de marido, mas fora dissuadido entre súplicas sussurradas para que não sujasse as mãos com aquele sangue imundo. Deus sabe o que faz. Um dia saio dessa vida. Preciso criar meus filhos. Rezava todas as noites antes de deitar-se insone para que Deus tivesse piedade dela e de suas crianças. Apanhava por elas, calada, punha-se entre o marido e seus quatro meninos e pedia com um sussurro que eles fossem para o quarto. Mamãe precisa conversar com o papai para ele se acalmar. E então sufocava os gritos de dor enquanto era atacada. Apanhava também por si mesma, humilhada, fosse um café mais doce ou um arroz úmido demais, pedia perdão e não era ouvida. Nova surra. Escondia as marcas tanto quanto podia sob a maquiagem. Fazia tudo pelos filhos.

Naquela tarde, estava cozinhando o jantar enquanto os quatro pequenos estudavam à mesa da cozinha quando a campainha tocou. Secou as mãos no avental que trazia amarrado à cintura e saiu do recinto. Passou pela sala de jantar, depois parou por um instante frente ao espelho de uma das salas de estar para conferir sua aparência. Arrumou o cabelo preso e foi atender à porta.

Era o turco.

Sem delongas, o mascate lhe entregou um pacote de papel-madeira e disse que era presente do marido. São pedras falsas. Dentro, um bilhete assinado pelo esposo lhe dizia palavras estranhas, de perdão.

Minha querida esposa,

Sei que não tenho sido um bom marido e que tenho te tratado com rudeza. Não é o que tu mereces, minha adorada. Mereces muito mais que isso. Por isso te peço, te suplico que perdoe todos os meus atos tantas vezes violentos e aceite este presente. Fiz essa encomenda ao turco especialmente para ti. Quero levar-te a passear hoje e quero que use esse conjunto para que tua beleza esta noite seja ainda mais resplandecente. Minha irmã ficará com nossos filhos.

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