Capítulo 11- O sarau de Tomásia

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Este mundo é grande campo, esta vida uma longa batalha, mercê de quem todos se combatem,
embora a cada espécie e ainda a cada sexo caiba seu gênero de peleja particular, assim como a cada
classe sua estratégia peculiar. Os homens, que têm para si tomado o que há de mais grave e talvez de
mais difícil na ordem da sociedade, se dão batalha por diversos modos: e, pois, o político se bate no
parlamento e nas ante-salas de palácio; o diplomata nos brilhantes salões; o literato no prelo; os artistas
nas exposições etc. As senhoras não podiam deixar de ter no mundo o seu campo de guerra; elas o tem,
o mote de todas é um só quero agradar, e o triunfo de uma significa a derrota de todas as outras.
Elas pelejam mostrando-se. No teatro elas pelejam, mas no teatro só são vistas por metade; no
passeio elas pelejam, mas no passeio só de relance se mostrarão; seu grande campo é, pois, a noite de
sarau. Então, desde a flor do cabelo até o bico do sapato, tudo se ostenta. Então se luta; luta-se uma
noite inteira espírito contra espírito, gracejo contra gracejo, ironia contra ironia; então se opõe seda a
seda, jóia a jóia, brilhantismo a brilhantismo; então se dança e se canta, se olha e se sorri, se fala e se
suspira com estudo, com arte e intenção. Uma flor vale ali uma espada, uma amiga serve às vezes de
escudo, um leque pode falar de longe, um lenço branco vale mais que tudo isso.
E a batalha é geral: não há camarada nem parenta que não possa ser uma rival; às vezes é uma
prima, uma irmã, mesmo a inimiga, a quem se hostiliza, a quem se não dá tréguas, a quem se faz
oposição na sala e se persegue até na toilette.
E o triunfo?... o triunfo está na imaginação: ao entrar no carro, ao apear-se dele em casa, ao
deitar-se no leito de repouso, a moça suspira fatigada, e diz — agradei! Eis sua vitória.
Pois uma dessas interessantes batalhas, em que damas são lidadores, e armas os encantos delas,
se dava com vigor em casa de Venâncio.
Conceba-se agora uma espaçosa sala em que se deve dançar, uma outra mais curta onde se joga,
um gabinete onde se há de tocar, uma escada gostosamente iluminada, pela qual sobem as senhoras
para a toillete, uma sala que deverá ser a de jantar, e que ora nela se servem refrescos, e, enfim, ao lado
dela um agradável terrado, cujos parapeitos estão cobertos de lindos vasos de flores, dos quais se pode
gozar o aroma, sentado em bancos crivados de conchinhas brancas; e ter-se-á feito uma justa idéia da
casa de Venâncio.
Conceba-se mais do belo ruído, toda a sublime desordem do começo de um sarau; as senhoras
que chegam, os beijos que estalam lábio a lábio entre as camaradas que se encontram; o murmúrio das que criticam; os planos que se forjam nas rodas de moços; as quadrilhas que se engajam; as lisonjas que
se dizem; as desculpas que se oferecem; e, sobretudo, os parabéns que recebe a Sr.ª D. Tomásia, e ter-
se-á feito também justa idéia do que aí se passava pouco antes de começar o sarau.
Nesse tão forte ostentar de agrados e louçainhas, e entre as que mais se extremavam, via-se a
madrinha da filha de Tomásia, D. Lucrécia, jovem viúva de vinte anos, orgulhosa de suas faces cor-de-
rosa, de seu rosto fresco e belo, do interesse que lhe dava seu estado de viuvez tão prematuro, e que,
cônscia de tais atrativos, ainda mais se deixava adormecer, sem cuidados do futuro, no seio da segurança
e da felicidade que lhe prometiam seus avultados teres.
Tomásia não cabia em si de contente: havia umas poucas de razões, porque se julgava venturosa.
Antes de tudo ela conhecia que jamais enganara com mais habilidade a si própria: com efeito, nunca
tingira melhor seus cabelos brancos, nem até então lhe havia M.me Gudin cortado com mais feliz mão
um vestido de seda; depois, Tomásia não deixava de ser mãe; via com orgulho sua querida filha, que,
como toda a moça que tendo dezesseis anos não é feia e mostra-se espertinha, brilhava aos olhos da
sociedade. Sem dúvida, Rosa fazia-se acompanhar em seus menores movimentos de boas duas dúzias
de olhos masculinos, como conquistador, que em triunfo arrasta após si vencidos algemados, tão
galantinha, tão faceira e (digamos em francês para mais agradar) tão coquette, que estava.
Finalmente, Tomásia se dava alegremente parabéns pelo gosto e brilhantismo de sua festa; fosse
como fosse, Venâncio arranjou-se o melhor que pôde; o dinheiro havia aparecido, e Brás-mimoso, que
tinha dedo para negócios tais, forjara e estava executando um plano de sarau tão bem concebido,
determinado, e posto em prática, que nada deixava a desejar.
A casa já se achava cheia de convidados, e a todos os momentos vinham chegando novos. Entre
os jovens mais elegantes, primava Otávio. Tomásia o tinha recebido com a maior afabilidade, e Rosa
com engraçado sorrir, posto que ambas já não contavam com ele: Félix as tinha precedentemente
desanimado com a relação da amorosa inteligência, que se dava entre ele e D. Lucrécia; e também
Otávio, que tanto olhara para Rosa no teatro, que a fora esperar à saída, e que até tomara nota da rua
onde ela morava, nem uma só vez viera passar por defronte das janelas da moça, e nem mais se lembrara
de seu lindo rosto moreno.
À vista de semelhante procedimento, Rosa tinha riscado o nome de Otávio da lista dos seus
adoradores, e o olhava quase com indiferença, quase que com os mesmos olhos com que observava a
multidão de moços que vinham entrando e espalhando-se pelas salas.
Às oito horas e um quarto da noite, pouco mais ou menos ouviu-se na sala um sussurro geral...
os homens precipitaram-se para ver uma pessoa que entrava, as senhoras moveram-se todas... umas
sorriram-se, outras estenderam os pescoços... foi, enfim, um movimento de curiosidade geralmente
demonstrado por toda a assembléia.
Era Honorina que entrava.
A curiosidade, que tinha sido igual tanto nos homens como nas senhoras, nascia, porém, de um
desejo absolutamente contrário; as senhoras desejavam dizer — é falso, e os homens — é verdade.
Não é uma ficção de romance. Uma moça, que dizem ser formosa e que chega a qualquer
cidade, é pedida e desejada pelos olhos de todos; todos a querem ver, e no coração de todos se prepara
um sentimento para ela, que antes da primeira vista apenas interrogativo. No coração das moças se
pergunta: “será uma rival perigosa”?... No coração dos moços se diz ao contrário: “será um encanto
poderoso”?...
E, pois, Honorina estava nesse caso. Fora, é certo, nascida e educada na corte, mas longe dos
olhos da multidão, abrigada à sombra do amor, e escondida debaixo do véu dos prejuízos de uma
família, que, arraigada a graves usanças, se espantava e corava diante da civilização galanteadora da
furta-cor França. Enfim, conquistada pelo gosto da época, ela entrava pela primeira vez em uma dessas
salas de prazer ardente, onde parece que se quer com olhos de fogo devorar a beleza, que chega.

O moço loiroWhere stories live. Discover now