Eu acordei e pintei meu rosto.
Tínhamos o costume de pintar o rosto para comemorar alguma batalha vencida ou algum feito importante, uma colheita ou algum casamento, enfim, era normalmente para algo importante dentro do contexto da nossa aldeia. Nunca havia simplesmente pintado o rosto, as linhas vermelho-sangue dançando sobre minha pele, como se fosse um ritual da felicidade estampado em meus poros, dos meus olhos a minha boca, delineando meus lábios com aquela cor vibrante. Eu estava quente, nos meus vasos sanguíneos eu sentia o fogo caminhando e fazendo seu caminho por entre minhas artérias até chegar em minha mente. Por algum motivo eu estava feliz, mais que o normal, porém algo não fazia sentido, era como se eu estivesse feliz mas...não eu por inteiro, e sim um outro eu, no lugar que não cabia a ele sequer comanda-lo.
"Eu" gargalhava e me deliciava com aquela cena. O que estava no meu rosto não era alguma tinta vermelha, como urucum por exemplo, era realmente sangue, meu sangue derramado dentro de uma cabaça e que ali me "banhei" com ele, fiz os traços perfeitos dos símbolos da aldeia e me sentia completo, era como se fosse eu e apenas eu naquele momento, somente eu, o silencio e o vento, as ramificações das folhas e o quebrar do mar na costa, o cheiro da terra molhada e o correr das correntezas. A voz que me controlava balbuciou para eu ouvir, uma voz que era produzida por minhas cordas vocais, mas que não era minha, mal se comparava com minha insegura voz.
"Gostou do presente que eu lhe proporcionei? Não se sente...completo? Mas não se elucide com tal sentimento de uma sublime perfeição que eu te dei, logo passará e nada mais será do que um vislumbre de uma das mais belas sensações que você algum dia almejará." Logo após tais palavras, "eu" gargalho friamente.
A voz calou-se. E naquela tenda escura e fétida ficaram apenas minha respiração fraca e o som da voz que saiu de meus lábios, ecoando por entre cada camada da terra, era quase como uma voz divina, mas qual seria o motivo de eu ser quem diz tais palavras divinas
"Você não precisa entender tudo de imediato". Disse a voz. "Só...aproveite enquanto ainda não acabou, eu não lhe mostrei isso antes pois talvez você fosse gostar de tal sensação, e sim eu sei que você sente um alivio imenso no momento, pois eu sou você, nunca se esqueça disso."
Eu estava perplexo. Era como se a voz que me controlava, ou eu mesmo, tivesse aprisionado um outro eu no lugar do anterior, e ele não poderia falar ou mover-se conforme queria, pois não estava no "comando". Eu tinha vislumbres de um outro eu chorando em algum canto escuro da minha perturbada mente, mas nada poderia fazer enquanto a voz estivesse ali, "viva". Porém, em um ponto especifico eu havia de concordar com a voz, eu estava mesmo aliviado, era como se eu finalmente soubesse quem eu realmente sou, e soubesse que cada desejo no fundo do meu âmago possa ser realizado com minha vontade, eu poderia dominar o mundo neste exato momento, e tinha convicção que se eu assim o fizesse conseguiria.
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Vermelho-Sangue
General FictionSerá que, em meio a natureza humana, podemos esconder nossa verdadeira forma de nós mesmos?