Pique-esconde

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    As crianças me chamaram para brincar e como uma boa tiazona eu fui. Elas eram rápidas, as danadinhas, me botaram para contar encostada na parede de olhos fechados e foram se esconder.

  Eu respirei fundo e me coloquei a contar. Só fiz isso porque era aniversário da Julinha e porque tinha aparecido na festa sem presentes e estava me sentindo culpada.

  - Quarenta e nove, cinquenta! Preparados ou não, lá vou eu! -grito para que todos escondidos possam me ouvir.

  Antes de me afastar da parede vejo uma mão passar por meu rosto e encostar no ponto de salve.

  - Um, dois, três salve todos! - diz uma voz rouca perto do meu ouvido.

  Me virei para ver quem era, mesmo já sabendo a resposta. O rosto de Felipe estava a poucos centímetros do meu, seus olhos, de um castanho bem claro, brilhavam e ele tinha aquele sorrisinho divertido no rosto.

  - Você estragou a brincadeira. - digo tentando esconder que minha irritação se dava pela proximidade de nós dois.

  - Ah sim, porque você estava se divertindo muito não é? - ele diz com tom irônico.

  Eu empurro sua mão que apoiava na parede fazendo ele perder o equilíbrio por alguns segundos enquanto eu me afasto. Eu pigarreio e boto o cabelo para trás da orelha enquanto o vejo se ajeitar e pôr as mãos no bolso.

  - O que você quer? - a frase sai mais ríspida do que eu pretendia.

  - Conversar, Débora, só conversar. - ele mantém a voz baixa e as mãos nos bolsos como se eu fosse um animal que ele não queria afugentar.

  Eu o olho desconfiada por um tempo. As crianças já começam a aparecer reclamando que eu não saíra para procura-las. Uma até mesmo gruda em minha perna e faz birra pedindo para eu ir brincar.

  - Eu salvei todos, acabou a jogada. - Felipe diz.

  - Mas você nem tava brincando! - Julinha reclama junto com os outros.

  - Mas eu preciso pegar a contadora emprestado por um segundo.

  Ele não espera por mais reclamações, passa a mão pelo meu braço e me leva para fora enquanto algumas crianças riem e fazem piadinhas. Quando chegamos a porta da casa, o barulho da festa fica abafado. Felipe solta meu braço e se senta na beirada do passeio.

  - De nada! - ele sorri pra mim e se vira pra rua.

  Eu hesito um pouco, mas acabo por sentar ao seu lado, mas perto do que deveria, na verdade. Espero que ele comece a conversar, mas ele não o faz, então, mexendo em uma graminha que havia crescido no asfalto, tento iniciar o papo.

  - Como vai sua namorada?

  Não começo nada bem, queria ter perguntado sobre qualquer coisa, menos aquilo, mas não posso negar que estou curiosa pela resposta. Ele ri novamente e passa as mãos pelo cabelo antes de me responder.

  - Eu não sei, na verdade. Já faz um tempo que eu e ela não estamos mais juntos...

  - Ah... - e isso é tudo o que sai da minha boca.

  Eu não sei como reagir. O fim de um relacionamento é algo triste, então não acho que deveria ficar feliz por isso. Quando fiquei sabendo que ele namorava fiquei muito incomodada, por que fazia dias que conversávamos e ele nunca a mencionou para mim, eu havia chegado a pensar que algo entre a gente pudesse se desenvolver. Mas ele já estava com alguém e eu disse a mim mesma que não seria mesquinha e que estaria feliz pelo relacionamento dos dois. Porém agora escuto essa afirmação dele... Eu realmente não sei como reagir.

  - Sinto muito. - me forço a dizer.

  - Não era justo, não é? Eu e ela... digo, já faz um tempo que eu só pensava em outro alguém, então era errado, não era? - ele gesticula um pouco ao falar e se vira para mim como para confirmar se realmente fizera a coisa certa.

  - Não sei. - suspiro. - Não é um assunto no qual eu deveria me meter de qualquer forma...

  Ficamos em silêncio por um tempo, eu brincando com a grama, ele olhando para frente, as mãos nos joelhos, pensativo.

  - Se você não tem mais nada a dizer, me dê licença, que preciso voltar para a festa. - digo me levantado de repente.

  - Espera, Débora! - ele se levanta também, pegando minha mão.

  Eu hesito com o seu toque. Sua pele é tão macia que me causa calafrios, mas mesmo assim tento arrumar desculpas para mim mesma por não ter retirado minha mão da sua, por só ter ficado ali, apreciando, sentindo, numa mistura de medo e desejo.

  - Você sabe que eu só vim pra te ver, não sabe? - sua voz é um sussurro como se tivesse receio de dizer o que disse.

  - Não, não sei. - digo francamente e me viro para olha-lo. - Eu não sei o que você quer, Felipe! Eu não sei! Por que você me fez gostar de você, e então me disse que éramos amigos e agora está aqui, então eu não sei!

  - Eu estou aqui por você. Por que desde de que te conheci não parei de pensar em você nem um segundo se quer! E você não sabe como me perturbou pensar que isso estava errado, pois eu estava com ela e não era justo que minha alma estivesse com você.

  Ele para seu discurso e tenta olhar nos meus olhos, mas eu me desvio. Fico pensando se ele não está apenas alucinando ou me usando como motivo para acabar com algo já acabado. A verdade é que agora, com ele me encarando desse jeito tenho medo e minha vontade e de voltar para festa, para o jogo de pique-esconde e contar até cinquenta para acalmar o coração e esconder todas as emoções que tentam me sufocar.

  - Talvez você esteja se precipitando. - digo ainda evitando seu olhar. - Não faz bem jogar um relacionamento fora de qualquer jeito, você devia conversar direito com ela...

  - É. - ele diz um pouco magoado. - Talvez eu não devesse ter vindo mesmo, nem presente eu trouxe.

  Como eu não respondo mais nada ele se vira para ir embora. Penso que deveria mesmo voltar para a festa e fingir que nada aconteceu, ele já está indo embora mesmo... Mas no caminho faço uma escolha que não deveria: olho para trás. O vejo andar para longe, os ombros largos, a cabeça um pouco abaixada, ele não olha para trás como eu e isso me faz sentir uma pontinha de dor no peito.

  O que eu estou perdendo? Pergunto a mim mesma e me sinto cada vez mais triste. Não penso muito quando chamo pelo seu nome e o vejo parar e se virar, seus olhos cruzando com os meus. Vou até ele. Talvez essa é a hora em que devo parar de brincar de esconde-esconde.

  - Me diz que não vou me arrepender disso. - digo baixinho ficando de frente para ele, seus olhos castanhos encarando os meus. -Que não vou me arrepender de ter te chamado de volta.

  Seus lábios se alargam de vagar em um sorriso e sinto sua mão passar pelo me rosto colocando meu cabelo para detrás da orelha.

  - Nunca. - ele diz.

  Se inclinando em minha direção ele me beija. É um daqueles beijos que não se esquece facilmente, como um sopro de vida que a gente nem sabia que estava precisando. E eu me deixo levar sabendo que realmente não me arrependeria.

O Verbo AmarOnde histórias criam vida. Descubra agora