A barca

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Hoje eu vou me arrumar para vê-lo. Contorno meu batom vermelho, aliso meu vestido com a mão, arrumo o cabelo meio solto e meio preso e me olho no espelho. Então tiro tudo de novo. E repito tudo de novo.

É como um ritual de tortura: tira, põe, se olha e tira novamente. Nada presta, nada é bom. E quando vejo, lá estamos nós, no carro em rumo ao parque de diversões e eu, no banco de trás, me contorcendo em um jeans apertado e um cropped largo, a boca manchada de tanto mudar de batom e o cabelo sem jeito preso em um coque, com os fios escapando como se pedissem libertação desse ninho de passarinhos.

Não estava nem perto de como planejava. Nada de exuberante, de dona de si ou de mulher empoderada. Já posso até imaginar como ele me veria: uma gatinha assustada, com olhos esbugalhados, miando por atenção. Mas ainda sim estava sendo corajosa ao ir, não é?

Enquanto eu apertava minhas mãos suadas umas nas outras, as meninas riam como qualquer outro bando de adolescente faz. Às vezes eu balançava a cabeça como que concordando com as coisas que elas diziam, outras fingia estar muito admirada pela paisagem, mas em meus pensamentos eu divagava no que falar quando o visse.

O carro para e eu levo alguns segundos para perceber que deveria sair. Ficamos enfileiradas em frente a porta do motorista para despedir do pai da Maria.

- Busco vocês as 20:30, meninas. - ele diz. - Divirtam-se!

Nós acenamos enquanto o carro vai embora. O parque brilhado atrás de nós, com suas luzes e brinquedos, enquanto o céu começa a mudar dos tons alaranjados para a escuridão do início de noite.

- Vamos, os meninos devem estar esperando. - disse Jessica, e nós seguimos no meio da multidão até o ponto que tínhamos marcado de nos encontrar.

Lá estava ele, ao lado dos meninos em um riso fácil, com camisa branca e jeans escuros, o cabelo fixado com gel. Não se podia negar que ele também gastou certo tempo para se arrumar. Faço uma bagunça com as mãos meio sem jeito, os dedos gelados ao abraça-lo em um cumprimento, torcendo para que minhas amigas não reparem em como estou estranha perto dele. Como posso ser diferente, se somos amigos a tanto tempo?

Tento focar nas conversas e esquecer os sentimentos. Não demora muito para surgir o assunto da barca. É com certeza um dos brinquedos que todos mais gostam, porque tem certa adrenalina. Eu odeio, claro, pois tudo que envolve altura faz minhas pernas tremerem. Mas quando vejo a animação dele com o brinquedo me finjo de corajosa e sem pensar concordo com a ideia.

Na fila minhas pernas tremiam de leve, pois a cada passo que dava mais próxima estava de subir naquela máquina. Ao meu redor todos estavam empolgados com a ideia, se remexendo ansiosos para se divertirem.

- Quero ir na ponta! - ele disse quando chegou nossa vez e entrou no brinquedo.

Eu o segui, meio irracional, eu sei, mas sentei ao lado dele enquanto as outras garotas me chamavam de corajosa, porque a ponta do brinquedo era a que ia mais alto e elas diziam que iam ficar no meio mesmo, porque tinham medo. Eu pensei em me levantar na hora e ir embora. Não era possível que eu iria ser tão idiota por causa de um menino! Mas assim que pensei nisso as alças de segurança se abaixaram e escutei os barulhos dos primeiros movimentos da barca.

Eu tentei manter os olhos abertos e a respiração controlada, mas assim que o brinquedo começou a subir eu não me aguentei. Me agarrei ao braço dele, que estava ao meu lado, até os nós dos meus dedos ficarem brancos e fechei os olhos apoiando a cabeça em seu ombro, pedindo silenciosamente para não desmaiar.

Dizem que quando tocamos em alguém que gostamos sentimos coisas diferentes, como fagulhas na pele, mas ao toca-lo naquele momento eu não senti nada. Não digo isso de uma forma negativa, como se não tivesse sentido nada por ele. Apenas não senti nada: meus dedos, braços, respiração. Eu era um eterno nada e até meu medo se dissipou por uns breves segundos. Como se fosse um momento importante que devesse ser parado e desfrutado sem influências externas. Senti ele apoiando a mão livre em minha cabeça, como que um afago me acalmando.

- Está quase acabando. - escutei ele sussurrar em meu ouvido, apesar de toda a gritaria ao redor. - Pronto, pronto. - disse quando o brinquedo finalmente parou.

Ele me ajudou a descer e eu agradeci mentalmente, pois não tinha confiança o suficiente em minhas pernas para isso. Eu queria pedir desculpas pela minha descompostura e por ter amassado o braço dele daquele jeito, mas achei que se abrisse a boca agora iria vomitar e isso seria mais vergonhoso ainda.

-Pessoal! - ele disse chamando atenção dos nossos amigos e apontando pra mim. - Ela não está passando muito bem, foi algo que ela comeu antes de vir.

- Sério? - disse Maria com tom de pena. - Você está tão branca amiga!

- É. Podem ir para o próximo brinquedo, vou sentar com ela ali um pouco para ver se ela melhora. - ele disse.

- Mas você não se importa se a gente for? - Jessica me questionou, querendo ir, mas não querendo se sentir culpada por abandonar uma amiga.

-Não. - consegui falar. - Podem ir, só preciso tomar uma água e vou ficar melhor.

Eles concordaram e ainda que as meninas ainda estivessem meio desconfortáveis com a situação, aceitaram ir aproveitar o tempo que ainda sobrava no parque. Quando ficamos sozinhos de novo ele me levou para um lugar menos movimentado para que eu pudesse me sentar. Minha mão ainda tremia, mas já me sentia melhor.

Ele disse que iria buscar uma água e eu fiquei esperando sozinha. Queria enfiar minha cabeça em um buraco de tanta vergonha. Além de ter pagado um mico na frente dele eu quase tinha acabado com a noite das minhas colegas. Imagina se eu tivesse desmaiado? Ai que vergonha!!

Quando ele volta com a água eu tento dar um sorrisinho para tirar a ruga de preocupação de sua testa. Pego o copo sentido o frio nos dedos e bebo um gole. Vejo seus ombros relaxarem quando percebe que estou melhor.

- Você é bem forte, né? - ele diz meio rindo. - Não que eu esteja reclamando de você segurar meu braço, foi meio que legal, mas doeu um pouco.

- Desculpa. - murmuro sentindo até minha alma se avermelhando de vergonha. - Da próxima vez me lembra de andar só nesses patinhos que ficam girando bem devagar.

Ele ri e ajeita um pouco a calça ao se sentar do meu lado.

- Porque você não disse que tinha medo? A gente não ia rir, sabe...

- Eu sei. - digo.

Não sei se quero explicar pra ele que o motivo de eu ter entrado naquele projeto do demônio foi ele, porque isso iria soar meio ridículo e porquê desse jeito eu estaria meio que me confessando e não me sinto preparada pra isso. Talvez eu nunca esteja, na verdade. Então resolvi apenas agradecer.

- Obrigada.

Ao meu lado ele analisa meu rosto como que memorizando detalhes, isso e o fato de estarmos em um silencio beirando o constrangedor me fazem querer me afogar dentro desse copo de água, que agora eu seguro cuidadosamente para não amassar.

- Acho que a gente se daria bem no bate-bate. - ele diz com a face a centímetros da minha.

- Que!? - pergunto arregalando os olhos e me afastando um pouco.

- No carrinho bate-bate. - ele diz rindo. - O que você pensou que eu estava falando?

- Ah cala a boca! - digo e o empurro com o ombro, o que o faz rir mais ainda. - Eu só não tinha escutado direito. - murmuro.

- Haha, você mente poluída, nunca iria imaginar isso! - ele diz pegando nos meus ombros para me impedir de empurra-lo novamente.

Cometo o erro de olhar para o lado, seu rosto bem próximo do meu, o sorriso diminuindo aos poucos enquanto nossos olhos se cruzam. Não preciso nem dizer que meu coração parece querer abandonar meu corpo quando seus olhos focam em minha boca. Engulo em seco tentando não me afastar e não afasta-lo.

É sutil e nada do que imaginei um monte de vezes quando seus lábios encostam nos meus, quase que sem querer, como um sopro, com medo de se encontrar e com medo de sair. É delicado e evolui aos poucos. Coloco minha mão em seu peito e sinto que seu coração está tão rápido quanto o meu. Chego até achar que estou alucinando quando escuto ao longe vozes conhecidas dizendo:

- Gente, olha lá, a Aninha e o Mauricio estão se beijando!

Então apenas ignorei e voltei a mente para o que fazia mais sentido, enquanto sua mão afagava de leve meus cabelos e nossa respiração se completava em um suspiro. 

O Verbo AmarOnde histórias criam vida. Descubra agora