Capítulo Um

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Eu estava tomando café quando o sino tocou a primeira vez.

Não que eu gostasse muito de café, mas não é sempre que dá para se escolher o que vai comer. Tudo depende do plantio e da colheita. As vezes há uma variedade grande em uma parte do ano e logo depois você come milho todo santo dia. Você sabe o que é comer milho todo dia? Bolo de milho, mingau de milho, pamonha, milho cozido, milho assado e por ai vai. Não sou a pessoa que mais reclama no mundo, mas chega uma hora que você prefere pular umas refeições.

Uma segunda badalada do sino.

Minha mãe me olhou com aquele ar de preocupação e eu balancei a cabeça. Aqui em Sollum as notícias são primeiro avisadas pelos sinos. E dependendo do quanto ele toque um problema muito grande pode estar por vir. Uma badalada pode significar várias coisas: pequenos julgamentos, animais mortos, alguma doença contagiosa. Duas badalas com certeza é um guarda morto e por ai vai. Até a quinta. Mas normalmente eles param no segundo já que tudo aqui é extremamente monótono.

Mais uma golada no café. Prendi o cabelo, um guarda morto não iria me dar um dia de folga.

- Se eu não sair agora vou me atrasar.

Ela segurou no meu braço.

- E se for algo mais grave? - Me desvencilhei. - Espere pelo menos o sino parar.

Suspirei. A vida era monótona por aqui.

- É só um guarda... - Mais uma badalada. - Certo.

E assim foi por mais cinco minutos. Eu olhando para minha mãe e ela roendo as unhas. Ela não era a mulher mais linda do mundo, mas tinha uma beleza exótica que chamava atenção. Na quinta badalada estávamos nós duas trancando todas as portas de casa. Era uma residência simples, não tinha mais do que cinco cômodos, mas vivíamos de forma confortável já que éramos apenas eu e ela.

- Vai estar uma confusão lá fora até eles convocarem o Animalium. Eles devem fazer o funeral o mais rápido possível. – Eu não queria pensar nas variáveis. A forma como fazíamos politica era um tanto quanto precária, mas funcionava. Não tínhamos pessoas em condições desumanas a muito tempo, entretanto, conflitos violentos eram parte do processo.

Bateram na porta. Minha mãe tapou minha boca, os olhos arregalados enquanto cheirava o ar.

- Abram! - Luca bateu na porta. - RÁPIDO!

Corri e destaquei tão rápido quanto ele entrou trancando de volta.

- Assassinaram ela! Assassinaram ela, Tia Kátia. - Ele estava ofegante, parecia ter corrido uma maratona, o que realmente deve ter acontecido já que a viagem do centro até nossa casa era um tanto quanto demorada. - Estão todos na frente do Conselho esperando alguém dizer algo, mas claro que não vão dizer. Assassinaram ela como corvo.

Isso sim era preocupante. Matar alguém dessa forma era desumano, no pior termo da palavra. Significava que quem fez não tinha honra alguma. Um golpe pelas costas, como matar um animal indefeso.

Mamãe deu água a ele enquanto eu me sentava na cadeira. Isso era um problema gigantesco. Matar um líder não era só um assassinato, se tiram uma cabeça duas novas aparecem. Nesse caso, doze. E eu não queria ser uma das cabeças a aparecer. Eu sabia do meu potencial, mas não é porque você sabe brigar que você necessariamente quer entrar em brigas.

- Vamos fugir! - Eu propus.

Minha mãe me deu um olhar desaprovador.

- Fugir para onde? Para morrer de fome? - As opções não estavam favoráveis a fuga, mas era melhor do que participar daquilo. - Vocês são em muitos, com sorte não serão selecionados. Nem passarão por essa ala.

Essa é a minha mãe tentando ser positiva, mas quando olhei para Luca ele sabia que as chances não estavam a nosso favor, evitamos estar em grandes círculos para não chamar atenção, e nem todos sabiam o poder que tinhamos. Após a morte de um chefe de estado, outro deveria ser colocado no poder. Era claro que as medidas de Mineva não favoreciam a todos e a achavam fraca por ser um Corvo, mas assassinato não era a melhor solução. Ela venceu o Animalium pela inteligência. Outros ganharam pela força.

- Respire fundo, Lira. – Eu já estava a beira de um surto. - Logo essa confusão irá terminar e poderemos voltar as normalida... - Um chute na porta e o som do martelo.

Ninguém precisava ir olhar para saber o que tinha acontecido. Tinham fixado na porta uma convocação. Eis aqui a minha certidão de óbito. Eu era uma das últimas da minha ordem e a minha mãe não tinha idade para participar do Animalium, sabia que era para mim e eu não poderia recusar tamanha honra. Mas eu não iria ver minha morte tão cedo.

Corri para o meu quarto e peguei a primeira mochila que vi, não poderia levar muito peso, apenas o essencial. Luca entrou pela porta logo atrás de mim.

- Você vai morrer na floresta. Não vai durar dois minutos, eles a caçarão e estacarão seu corpo nas portas da entrada. - Ele falou aquilo com tanta frieza que eu até poderia pensar que era aquilo que ele queria. - E ai sim não terá chance nenhuma. Será morte certa. Sem sombra de dúvidas.

- Morro com minhas mãos limpas. Não pretendo matar ninguém para conseguir um poder que eu não quero.

Ele riu, aquela risada que não tinha graça nenhuma.

- Não precisa subir ao trono, faça alianças e vire um dos ministros. Tudo será novo após o evento. Será muito melhor, vai poder ir e vir quando desejar. - sentei na cama. Um ministro morria e revivia. Não sei se queria ver a face da morte para talvez então voltar. Deixar a minha vida a mercê de alguém que eu nem conheço é dar muito para um desconhecido. - Você é forte, vai durar mais que a maioria. Só mude quando necessário, eles não precisam saber o quão forte você é.

Ouvir aquilo não foi tão ruim quanto eu achei que seria. Eu tinha chances de sobreviver, mas eu não queria aquilo. O que uma feirante tinha a oferecer?

- Eu não nasci para isso. Alguns são treinados para serem guardas. Eu vendo frutas. - Respirei fundo. - Talvez na floresta eu consiga sobreviver. Os guardas não são tão bons quanto dizem ser. - Luca era meu primo de consideração, portanto, não era um igual. Eu sabia que era forte, mas não queria usar o que tinha para matar meu próprio povo.

- Você vai se sair bem. Tem três dias para se preparar para a primeira prova.

Ri de desgosto. Eu queria sair desse lugar, eu tinha juntado algumas moedas. Não era muito, mas já era algo. Agora? Agora eu tinha que ir para a morte. Não tinha mais motivo para juntar nada, ou eu sairia dali uma Marcada ou eu não sairia.

- Que assim seja. - Falei olhando para o chão.

- Que assim seja.

Animalium - Tudo Pelo PoderOnde histórias criam vida. Descubra agora