Um começo conturbado

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⠀⠀⠀⠀⠀Acordei em um dia gélido como qualquer outro, pela janela do meu quarto conseguia ver os flocos de neve caindo do lado de fora. Teria nevado durante a noite? Pensei sozinho, por um momento, até ouvir uma voz familiar me chamando, vinda do lado de fora. Com um sorriso brincalhão no rosto, subi à janela e respondi.

⠀⠀⠀⠀⠀" Bom dia, com quem deseja falar? " Respondi a garota que olhava diretamente para minha janela.
Ela possuía cabelos curtos, uma camisa de manga regata, apesar do frio, e uma calça que ia até as canelas. Seu rosto era de impaciência e estresse, obviamente já estava cansada de me esperar para fazer seja lá o que deveria ser nosso dever do dia.

⠀⠀⠀⠀⠀" Pode por favor descer aqui para irmos caçar? A mulher da creche pediu pelo menos dois cervos para o resto do mês e já é quase dez da manhã. Eu quero ter pelo menos um deles até a hora do almoço. " Disse ela com um tom de estresse. Calime era uma belíssima caçadora, sempre empenhada e, desde pequena, forte como um touro, o que acompanhava sua personalidade. " Okay, já estou descendo, me dê alguns minutos. " Falei mantendo o sorriso em meu rosto, saindo da janela e trocando de roupa.

⠀⠀⠀⠀⠀Após pegar uma roupa decente para o trabalho desci as escadas e peguei uma maçã e uma porção de carne seca da dispensa, indo para o lado de fora da casa apenas para encontrar meu pai, o ferreiro, trabalhando em outra espada para os guardas da vila. " Bom dia velhote. " Falei dando uma mordida na maçã, guardando a carne no bolso. O homem virou-se para mim com um sorriso grandioso no rosto, o mesmo que sempre teve desde que me conheço por gente. " Bom dia bezerro, como vai? Calime estava aqui perguntando por você, acho que ela finalmente conseguiu te acordar não é mesmo? " Falou o ferreiro rindo com vontade. O espírito do homem era uma benção para qualquer um. Sempre de bom humor, sempre sorrindo, sempre uma luz para todos, especialmente para mim, seu único filho. " Sim, ela falou comigo. Vamos caçar hoje, ela já está pronta? " Perguntei, ansioso. " Sim, está, mas tenha mais cuidado, da próxima vez. Não posso ficar re-forjando sua arma sempre. " E então, de um canto, o ferreiro puxou um machado. Era enfeitado com escrituras em letras que não conseguia ler. Peguei o machado e pus em minhas costas, encaixado-o em um gancho que servia de para guarda-lo enquanto não o uso. " Pode deixar. " Falei em um tom animado. " Não vou quebra-lo mais. " Lhe garanti enquanto começava a sair. " Hey, garoto. " Ele me chamou a atenção, me fazendo virar em sua direção. " Boa sorte. " E uma última vez me deu um sorriso brilhante, deixando-me ir para a caçada.

⠀⠀⠀⠀⠀Na entrada da vila consegui encontrar Calime, arco em volta do peito pequeno e aljava nas costas. A garota batia o pé já, bastante irritada comigo, mas com um sorriso de canto por me ver chegando. " Você demora muito, sabia? " Perguntou ela, sarcasticamente. Nós saímos andando pela floresta que rodeava nossa vila. A floresta era um pouco densa e cheia de ramos de árvores grossos saindo pelo chão, o que atrapalhava um pouco a movimentação, mas nunca fora um problema para nenhum de nós dois. Enquanto caminhávamos conversamos sobre diversas coisas, principalmente rindo de comentários dos anciãos da vila, que sempre importunavam a irmã de Calime por sua leitura especial.

⠀⠀⠀⠀⠀Após andarmos por algumas horas um som ao longe nos fez calar a boca. Era o som de algo mastigando. Calmamente vi Calime sacar seu arco enquanto andávamos agachados em direção ao som. Chegamos a tempo de um lobo, um pouco grande demais, comendo um cervo à beira de uma montanha. O animal estava encurralado em uma pequena depressão que, por sorte, estava livre de árvores. O barulho que o animal fazia enquanto dilacerava sua presa era de revirar o estômago, porém, minha cabeça estava focada em algo diferente, focada em como iríamos derrubar uma besta daquele tamanho. Cervos andavam escassos então qualquer animal que conseguíssemos seria bom o suficiente.

⠀⠀⠀⠀⠀Olhei para o lado, vendo Calime pegar uma flecha da aljava e prepara-la com todo o cuidado. Seus olhos se mantiveram fechados por alguns segundos e logo que foram abertos tive tempo apenas de ouvir a flecha zunir pelo ar e entrar em contato com algo. Quando olhei para o animal ele havia parado de comer e virava-se para de onde vira o ataque. Por um momento me perguntei se a menina tinha errado pois consegui ver sua flecha alguns metros longe do lobo, mas então vi que sua trajetória não estava certa.

⠀⠀⠀⠀⠀"Você errou...? " Perguntei um pouco pasmo. A menina me respondeu com uma entonação confusa, parecia tão atordoada quanto pela situação quanto eu que não tinha visto. " Não... Ela ricocheteou... " Respondeu-me. Ri um pouco pela resposta da garota. " Não seja louca, não tem como isso acontecer... É só um lobo. Veja, eu mesmo vou mata-lo. " Disse, tirando o machado de seu gancho e indo em direção do lobo. Consegui sentir minha amiga tentando me puxar junto com meu mau presságio, uma tentativa de evitar que eu pusesse os pés onde o carnívoro poderia me ver.
Deslizei para dentro do pequeno buraco, assobiando para que o lobo focasse em mim. O animal grunhiu e rosnou para mim, mostrando dentes tão afiados quanto meu machado. Dois caninos grandes o bastante para arrancar minha perna com a devida força que o animal parecia ter. " Isso mesmo garotão... Eu estou aqui para te levar para casa, talvez sua pele seja meu próximo casaco, que tal? " E com esta ameaça, que o animal pareceu entender, ele me atacou, pulando de onde estava em minha direção, dentes à mostra, prontos para me morder. Com um pensamento rápido consegui desviar do ataque. Direita, o mesmo lado que segurava o machado. Apesar de ambidestro era meu braço mais forte. Enquanto desviava preparei um ataque. O lobo passou perto de mim, quase pegando meu braço esquerdo com seus dentes até que ataquei com toda a força que tinha. Por um momento pensei que tinha penetrado a pele grossa do animal, mas, assim que foquei minha mente no impacto, vi que meu machado não havia nem entrado em contato com sua carne. O pelo grosso do predador realmente não havia deixado meu machado lhe perfurar, ao invés disso, sua pele soltava faíscas como se tivesse acertado uma armadura de metal.

⠀⠀⠀⠀⠀" Mas que merd... " Foi o que consegui murmurar antes de levar com uma garra na barriga, cortando do começo de minha perna esquerda até minha costela direita, um rasgo não muito profundo, mas bastante doloroso. O impacto de sua pata me jogara para trás do animal, perto da carcaça do cervo que antes estava sendo comido, agora o encurralado era eu. Ajoelhado na neve branca grunhi, respirando intensamente enquanto sentia o calor de meu sangue lentamente escorrer pela ferida. O lobo virou-se para mim, rosnando com o que parecia ser um sorriso vitorioso até que uma flecha veio zunindo, acertando o olho do mesmo. O animal uivou de dor e Calime desceu do meio da floresta até mim, me ajudando a ficar de pé.
" Você é um idiota, um grande idiota. " Dizia ela repetidamente, me puxando para longe do local. " Corre... " Falei ficando em pé sozinho. A dor era agonizante, mas um peso em uma pessoa era algo que não era aceitável naquela situação. Me virei para trás para ver como estava o lobo e consegui vê-lo arrancar a flecha, deixando seu olho e pelo ensanguentado, porém olhando fixamente para nós com o que lhe sobrara. " Corre! " Falei mais alto, empurrando a menina para a frente enquanto começava a correr.
Desviando de troncos de árvores e ramos no chão, fazendo o possível para não cair no chão pois eu sabia que, um passo em falso, o que estava atrás de mim seria meu fim. Conseguia ver Calime, tão desesperada quanto eu, era a primeira vez que via a menina em tanto pânico. Ao longe ouvi o uivo do mesmo lobo porém, segundos depois, dois, não, três, não sete outros uivos vinham de diferentes partes da floresta à nossa volta. Claro que ele trouxe mais, por que não traria mais? Pensei, perguntando-me em um tom de raiva. O que estava acontecendo? Da onde saíram animais tão resistentes? São mesmo lobos? Foram mais perguntas que, no pequeno momento que senti de calma enquanto corria, consegui pensar, sendo puxado drasticamente de volta à realidade pelo som de um animal arfando ao meu lado. Olhando para onde vinha tal som consegui ver a silhueta de um animal. Inicialmente pensei ser o mesmo lobo mas logo notei que a silhueta se dividia em duas e que outras sons foram surgindo perto de nós.

⠀⠀⠀⠀⠀" São muitos! " Ouvi Calime dizer, definitivamente assustada com a situação. " Temos que achar um lugar para nós escondermos! " Foi o que falei quando, por muita sorte, avistei uma entrada na montanha. Sem falar muito corri na direção da mesma, puxando Calime que, por um segundo, ficou sem saber o que estava acontecendo. Quando ela voltou aos seus sensos corremos em direção da entrada, os lobos agora pulando em nossa direção, tentando cada oportunidade para um ataque.
Era uma entrada para uma mina antiga, bloqueada por tábuas de madeira encrustadas por musgo e gelo. " Preparada para isso? " Perguntei puxando a menina para perto de mim. " Ennon, não! " Exclamou ela pouco antes de eu atravessar as tábuas de madeira com o impulso que tomara. Ao atravessarmos as tábuas senti uma leveza estranha em meu corpo, não sabendo bem o que estava acontecendo. Quando foquei no que estava acontecendo consegui ver que a entrada na verdade não era para uma mina e sim um buraco, e na verdade, estávamos caindo.

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