Capítulo 1

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Você quer saber como decidi a data do meu último dia de vida? Talvez essa seja a questão mais terrível de que alguns tem de lidar: a chegada do fim. Nos próximos seis meses você entenderá o que me fez chegar até a conclusão de que isso é inevitável. Tenha calma e peço delicadamente que resista, especialmente nos dias em que eu estiver sendo entediante. Tudo isso passará. 

Começaremos com minha rotina: O café recém preparado acaba ser posto em minha xícara favorita, os pães adquiridos há pouco esperam por mim na mesa de vidro retangular, no canto da sala. Como companhia, deixei a televisão ligada, ouvindo o jornal matinal e todas as notícias tediosas de sempre. 

Caminho tranquilamente pela sala, hoje é segunda, mas tenho a sorte de só ter aula às 10h. Conservo um terrível hábito de acordar cedo o que é, para alguns, um luxo. Sento-me na cadeira razoavelmente confortável, o mesmo lugar que costumo ocupar há muito tempo, para acompanhar o mesmo programa que odeio, mas que por costume tornou-se parte dos meus dias. Eu odeio jornais. 

Digamos, eu já tenho uma vida repleta de males e medos e deparo-me, diariamente, com um maldito diário de horrores e fatos negativos, balanceados por um mínimo de coisas boas. Digo o mínimo mesmo. Mas não é por isso que decidi encerrar minha jornada, não se apresse. Aos poucos, tomo lentos goles do café, que reservo após comer o pão, o mesmo que compro há três anos, na mesma padaria, nas mesmas quantidades. Como praxe, o relógio marca 7h30, indicando que era hora da minha pensativa ducha quente. 

Na noite anterior costumo selecionar qual traje vestirei para o dia de trabalho, mantendo alterações mínimas caso haja alguma interferência climática ou uma repentina mudança no projeto. Parte da minha decisão de pôr fim à minha trajetória começou em uma das duchas quentes, quando ponderei o que de fato estou fazendo preso em uma rotina tortuosa de trabalho, descanso e obrigações. Mas ainda não é hora de pôr fim em tudo. Com tranquilidade, sigo ao quarto, vestindo peça por peça do traje: estarei com uma camisa social azul-escuro, calça social e sapato preto. Checo no espelho se de fato estou impecável, confirmando se não há vestígios de tempo ou desgaste em qualquer das peças. 

Acerto o cinto, ajustando a volumosa fivela e sigo em busca de minha pasta marrom de couro, que deixo na mesinha ao lado da cama. Na mesma ainda haviam alguns livros que abandonei na noite anterior, após ser vencido pelo sono, ou até, quem sabe, frutos de leituras completas, mas que ainda não tive tempo de reconduzir à enorme biblioteca que mantenho no quarto ao lado. Com a pasta em mãos, sigo até a sala, passando uma das mãos na mesa para recolher chaves, carteira e celular. A televisão desligará sozinha em alguns minutos, então sequer acompanho o que a tela exibe, mas sigo para a porta, confirmando o horário: 8h40. 

Sim, levei em torno de 1h10 minutos para concluir minha refeição e aprontar-me para sair. Não era um hábito, mas cada dia as reflexões tem levado mais tempo, especialmente quando comecei a ponderar também certas ações que preciso tomar antes da partida. Decidi que o dia 26 de dezembro será meu último dia de vida. Projetei cuidadosamente os detalhes, para que tudo pudesse ser da melhor forma e espero que tudo ocorra conforme imaginei. 

Primeiro, estarei de férias no colégio, como todos os demais professores. Segundo, planejei uma viagem, para anunciar aos colegas inconvenientes que insistem em saber o que farei em mais um final de ano. Terceiro, escolhi uma data festiva, em que poderei ser facilmente esquecido pelas volumosas demandas familiares. 

Por fim, desaparecei em alguma floresta e demorarei a ser encontrado. Será perfeito. Não me entenda mal, o meu fim não é um capricho, ou a tentativa de criar uma tragédia inesquecível, mas é uma decisão que tem sido gestada, amadurecida, refletida e agora, posta como uma medida a ser tomada. 

É o que eu tenho. A porta do elevador abriu em minha frente, desço até a garagem sozinho e olhando por alguns instantes no enorme espelho traseiro. Caminho para meu carro, destravando-o assim que me aproximo. A pasta vai no banco do carona, como minha passageira e eu trato de me ajeitar no banco do motorista, pondo o cinto, encaixando a chave na ignição e garantido que o veículo está pronto para partir. Em instantes, aceno positivamente para o cordial porteiro, que saudou-me com um bom dia e um largo riso. Eu realmente gostaria de ter tal disposição numa segunda feira. 

Como um fim aconteceWhere stories live. Discover now