COALESCÊNCIA (1ºParte)

50 7 2
                                    

As crianças do orfanato gritavam histéricas no pátio, Stephen estava sentado desenhando em silêncio como sempre costumava fazer, já não tinha mais nenhuma esperança de que seria adotado, possuía dezesseis anos, viveu toda sua vida ali, seu pai e sua mãe eram dependentes químicos que morreram de overdose assim que ele nasceu, e como não possuía parentes conhecidos morava no orfanato a anos (ou melhor, sua vida inteira), por algum motivo estranho nunca fora adotado, vira seus amigos de infância e conhecidos serem adotados por famílias amorosas enquanto ele congelava sobre as frias paredes de concreto, o inverno se aproximava, seu cabelo ruivo-fogo comprido estava salpicado de neve, sua pele pálida parecia estar em harmonia com o frio, e seus olhos castanhos brilhavam com a luz do sol. 

Ele desenhava uma serpente, sempre tivera um talento natural para desenhar, talento este que apenas crescera ao longo dos anos, a serpente era fina e peculiarmente longa, dando voltas e reviravoltas nela mesma, se perdendo e se embolando em um labirinto causado pelo próprio corpo, ele a desenhou neutra, sem expressões ferozes ou mansas, apenas olhava para o infinito, pretendia deixa-la em preto e branco, no máximo iria colorir alguns detalhes de violeta, o vento soprou, fazendo seu corpo tremer, ele fechou o caderno e colocou o lápis sobre o ouvido, ele observou as crianças correndo e rolando nos pequenos e achatados montes de neve virgem, não sabia como elas conseguiam ficar alegres daquela maneira em um lugar como aqueles. 

Ele não odiava o orfanato, apenas era amargurado pelo fato de já estar "velho", com uma probabilidade negativa de ser adotado, ele inspirou, e deitou se no banco, ele encarava as nuvens, que pareciam sorrir para ele de forma materna, ele acompanhou um floco de neve descer das incríveis alturas atmosféricas até pousar na ponta de seu nariz avermelhado, sentia que aquilo era a forma que o céu achou para abraçá-lo amorosamente, ele sentou se novamente, encostando as costas no frio gesso do banco, e voltou a desenhar. 



Stephen encarava a lua pela janela, ela brilhava gorda e pálida no céu negro, como uma enorme lâmpada acesa no meio de uma caverna infindável, as estrelas pareciam voar e ziguezaguear como milhões de vaga-lumes pelo céu noturno, as cortinas balançavam conforme o soprar do vento, ele estava acordado a muito tempo, não costumava dormir muito rápido, sempre demorava algumas horas, ele podia ver a baía da cidade, com sua descomunal roda gigante e suas luzes néon que pintavam o céu, ele pegou sua lanterna e caderno, acendeu-a e começou a desenhar. 




O pátio externo estava inundado pela neve, mesmo assim as crianças continuavam pulando e berrando, fazendo fortes de neve e jogando bolas umas nas outras, ele preferiu ficar do lado de dentro, amava o frio mais que tudo, mas estava com uma leve dor de cabeça, que poderia muito bem se transformar em algo mais poderoso por conta das marteladas dos gritos, quando um casal parou ao seu lado, a mulher possuía cabelos castanhos que iam até a cintura, seus olhos azuis pareciam reluzir com as lâmpadas, ela usava um sobretudo vinho longo e saltos pretos, o homem usava um sobretudo amarronzado, longo assim como o da mulher, ele usava sapatos perfeitamente limpos, seu cabelo negro amarrado para trás no estilo samurai e sua exuberante barba, negra assim como o cabelo, davam a ele um ar importante, ele usava óculos que pareciam caros e seus olhos cor âmbar pareciam brilhar assim como os da mulher, ele estava com o braço envolto em sua cintura, eles sorriam estranhamente, mostrando seus dentes perfeitos, encaravam Stephen, que apenas os analisou por um segundo e então começou a desenhar, até que hesitou e finalmente virou seus olhos para eles. 

-Olá! 

Eles disseram exatamente ao mesmo tempo. 



Stephen entrou junto com o estranho casal no Volvo modelo XC40 que parecia novo, sua pintura, as rodas, todos os elementos no carro pareciam frescos, em seu interior o aroma típico de um carro recém comprado invadiu seus pulmões. 

Finalmente ele estava sendo adotado, mas ainda sim se sentia estranho, eles eram estranhos, ao longo do caminho falaram um pouco sobre o que ele gostava e como se sentia sobre aquilo, porém ele não falou muito, eles eram simpáticos, mas pareciam de alguma forma ocos, eram muito ricos, ela se chamava Anneliese Van den Berg,  uma importante empresária holandesa (já havia reparado isso antes por conta do sotaque) que herdara uma fortuna bilionária de um avô falecido e ele Deimos, um médico de destaque nacional milionário.

Parecia que quanto mais se afastavam da costa, mais a paisagem era tomada pelos enormes pinheiros, eles moravam em uma mansão gigantesca engolida pelas árvores, ela possuía uma arquitetura rococó francesa, com uma coloração externa azul-marinho que parecia impecavelmente fresca, de lá era possível ver a cidade de Bellseran pairando sobre as diversas montanhas, na entrada da casa existia um enorme portão esverdeado com a silhueta de um louva-a-deus no centro, ele se abriu majestosamente, revelando um jardim exuberante com diversas flores coloridas e plantas de diferentes tamanhos, havia também uma enorme fonte, que jorrava água aos montes pela boca de três esculturas de serpentes, ao entrar na enorme mansão se deparou com um salão gigantesco, com detalhes minuciosos e muito bem ornamentados, com pinturas suaves e luminosas, além de muitos espelhos e uma infinidade de detalhes florais, era como se aquilo fosse um local antigo que fora conservado perfeitamente ao longo dos séculos, Stephen se sentiu deslocado no meio de toda aquela exuberância luxuosa.

Quando terminaram de mostrá-lo lo a imensa casa ele já não aguentava mais caminhar, eles possuíam uma imensa biblioteca de dois andares, longos corredores que pareciam ser infindáveis, uma cozinha tão grande que provavelmente possuía o tamanho de dez normais, um salão de jantar descomunal, uma sala com poltronas almofadas enormes, dois pianos de carvalho esculpidos a mão e uma imensa lareira de pedra,ele conheceu dez faxineiras, sete jardineiros e oito cozinheiras, a noite engoliu o céu azul e o sol mais rapidamente do que Stephen já vira antes,  ao chegar a enorme mesa, um banquete bizarramente rico estava posto a mesa.

Fondues, perus, croissants, bolos, caldos, frutas, macarons, e muitas outras coisas que ele nem mesmo sabia o nome tomavam a mesa por inteiro, após um saboroso banquete ele lavou-se e logo se deitou, nunca havia se deleitado tanto em uma refeição, ele encarava o teto, seu quarto era rococó assim como o resto da casa, porém este possuía tonalidades vermelhas, ele virou-se para a janela, as pesadas cortinas cor de vinho mexiam-se como gordos pulmões doentes, inspirando e expirando com dificuldade, ele tentou dormir mas aqueles órgãos de tecido vermelho causava-lhe arrepios, ele se descobriu da enorme e grossa manta e levantou-se, abriu as cortinas e deixou a fúnebre luz da lua inundar o quarto com seu tsunami branco, ele começou a olhar para a obscura e misteriosa mata que engolia toda a paisagem, após alguns minutos começou a ter pensamentos sobre as coisas que poderiam viver lá, não querendo começar a imaginar coisas que não esqueceria levantou-se novamente e fechou os enormes pulmões mais uma vez.

                                                                                      ***

COALESCÊNCIAOnde histórias criam vida. Descubra agora