Uma das coisas que eu mais aprecio em lembranças é a capacidade olfativa de se reviver com intensa propriedade momentos que um dia foram mágicos. E, naquele dia, um estranho cheiro de jasmim rondava aquele bar nos cafundós da Rua Augusta.
Quando fecho os olhos, também sou capaz de escutar com intensa peculiaridade a voz profunda de Maria Cecília ao microfone que o encantou com tanta intensidade enquanto mergulhava nos versos de Elis. Trajada de um vestido dourado, ela gesticulava enquanto seus lábios se curvavam no sorriso mais bonito que Davi um dia já deslumbrou. Assim como eu, ele se lembraria para sempre daquele cheiro de jasmim e das ondinhas suaves no tecido amarelo. Mais ainda, recordaria para sempre o peso de seus olhos azuis sobre os seus castanhos e a eletricidade que os percorreu no intervalo curto de apenas três segundos.
Davi se apaixonou na mesma hora. Maria Cecília, duas semanas e três dias depois.
Era uma quarta-feira do mês de setembro, o mês que Maria Cecília detestava. As razões eram múltiplas: o amor de sua vida havia tido uma overdose fatal no mesmo mês, a sua última tentativa de amar havia sido sanada por completo após um término de noivado muito tumultuoso e intenso e, de quebra, era aniversário de sua mãe. Só coisas ruins aconteciam em setembro.
Para se distrair, sem ter qualquer teste para ser feito, ela gostava de cantar num pequeno karaokê em um bar que quase sempre vivia vazio nos arredores da Rua Augusta. Ali era relativamente longe de sua casa e, embora fosse ali pelo menos uma vez na semana, era uma completa desconhecida para a maioria das pessoas. Ali não era Maria Cecília. Era Clarice.
Clarice, a mulher de trinta e dois anos que exibia sempre um belo sorriso e uma incrível capacidade de interpretar canções tristes. O encanto da plateia era quase sempre imediato. Era encantadora e pelo menos oitenta por cento das pessoas gostavam de conversar com ela. Clarice não exibia problemas: era a parte boa, simpática e fascinante de Maria Cecília. Era tudo que ela gostaria de ser todos os dias.
Em compensação, setembro era sempre um mês de comemoração para Davi: era o aniversário da empresa que havia consolidado na cidade que tanto sonhou em morar quando pequeno, do momento tão aguardado em sua vida de ganhar o prêmio como o empresário revelação e o aniversário não só de seu pai, como também de sua afilhada, Gabriela. Setembro era um dos melhores meses: era não só a primavera do calendário, como definitivamente de sua vida. As coisas costumavam florescer em setembro, mas, especialmente naquele, não vinha sendo assim.
Três horas mais cedo naquela quarta-feira ele enfim havia tirado do dedo a aliança de seu finado casamento. O sentimento triste era imprescindível: poucas vezes em sua vida Davi havia se sentido tão mal. Tinha um apreço especial pela ideia de sempre viver com um sorriso no rosto, mas conviver com a traição de Manuela vinha sendo particularmente difícil de lidar sorrindo. Sabia que a parte mais preciosa de seu coração estava quebrada e, nem mesmo com sua mente engenhosa e genial, não via como consertá-la.
Manuela era perfeita aos olhos de Davi, mesmo com todos os seus defeitos muito claros. Ela não gostava de toques em público, tinha um apreço quase doentio por luxo e não gostava de cachorros. Era muito para Davi, como modelo de uma importante agência de São Paulo e, mais tarde, de Londres. Mas Davi certamente também era muito para ela, de inúmeras outras formas.
A tristeza sempre o fazia ter escolhas que julgava estranhas. Dessa vez, havia se metido num canto escuro da Rua Augusta. Tudo que mais queria era chorar sem que conhecesse ninguém acompanhado de uma cerveja gelada e uma música triste ou punk, como sempre esperava de ruas como aquela.
Mas, pelos breves três minutos de Elis, Davi se esqueceu de todos os seus problemas. Tudo que sabia fazer era focar em Maria Cecília e na maneira como gesticulava suas mãos. Sentiu o seu coração, os pedacinhos partidos, se reestruturando só para apreciá-la e saber que aquele talvez fosse o amor de sua vida. Ela, sim, era a mulher mais linda que já havia colocado os olhos.
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Último Romance
RomantikColetânea de histórias num mesmo universo com temática romântica e problemas cotidianos. Não segue necessariamente uma ordem cronológica, embora possa contar alguns fatos no decorrer da história. As histórias se passam em São Paulo e Rio de Janeiro...