O anjo Branco e o demônio vermelho

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            E era assim, desde que eu lembro era assim. Havia um demônio, não era sempre o mesmo, mas sempre havia um. Era vermelho e raivoso, de asas quebradas e coberto de cortes, machucados, cicatrizes e sangue, tanto sangue que o cheiro de ferroso impregnava o ar. Ah, e a loucura nos olhos, aquela loucura que se vê nos olhos onde a sanidade jamais voltará. A nudez exposta através das vestes rasgadas de lutar e dentes perdidos no combate. Brandando seus gritos de ódio com toda a força de seus pulmões.

Havia sempre um demônio, como não haveria?

Então ao longe uma luz branca surge no horizonte, linda e magnífica. Tão fresca que traz sempre um perfume de flores que nunca se conseguia identificar. Um anjo branco belo e imponente, de pele limpa e pura, vestes longas e reluzentes. Chega voando no vento com suas asas amplas e alvas, sereno e determinado.

O anjo branco chega e encara o demônio vermelho com um desprezo desapaixonado, aponta a lança polida para o oponente em tom de acusação e começa a citar lhe os crimes. Aponta-lhe a vergonha da nudez sob as vestes rasgadas, acusa-o de ódio, raiva e loucura, fala com escárnio da fealdade das cicatrizes e marcas. O demônio uiva e urra de dor e cólera e algo diferente que talvez soe como um breve e fraco pedido de misericórdia. O anjo continua o discurso e fala sobre o fedor de suor e sangue, o sangue inocente que foi derramado, o sangue que tingiu o demônio. O ser vermelho se retorce em desespero e arranha a própria face com suas unhas, que mais parecem garras. Cai de joelhos e abraça a si mesmo, olhando para o alto enquanto grita em angústia. Para quem ele olha? O anjo espera pacientemente pelo silêncio que não tarda a chegar e diz seu veredito em uma voz firme e acusatória: "Homicida!".

O demônio vencido pela dor e pelo desvario, incapaz de ouvir uma palavra mais, apenas alcança uma lança que estava no chão e com a velocidade alimentada pelo furor arremessa-a certeira na em direção ao anjo, acertando-o na boca. O anjo em dor e susto cospe sangue e dentes enquanto tenta se proteger do demônio que se joga sobre ele. O anjo perde a própria lança para o demônio que a atira ao chão. Então o branco anjo se vê em uma luta de garras, mordidas e punhos. Uma luta brutal que ele não estava preparado. Ele acreditou estar, mas não estava. Como estaria?

A primeira mordida do demônio lhe lacera o ombro ao mesmo tempo que sente seu sangue quente encharcar as próprias roupas percebe como os dentes quebrados em lascas são afiados. As suas lindas e imaculadas vestes e pele são rasgadas pelas garras do demônio fazendo novos jorros de sangue. Pânico é a reação do anjo. As coisas não deveriam ter acontecido assim. Ele faz uma desesperada tentativa de fugir. Abre as asas esperando voar para longe, para um lugar a salvo. Mas não pôde, jamais poderá. O demônio ataca as asas do anjo sem dó, partindo-as e inutilizando-as ante que possam bater.

Então a dor é maior do que se possa suportar. A dor traz consigo a insanidade e o desperta para luta. Se não lutar o anjo morrerá. Logo o anjo se joga sobre o demônio e o atinge. Suas mãos atacam a carne do demônio freneticamente. Anjo e demônio se engalfinham em um combate de dentes e unhas e garras. O sangue flui e tinge tudo e todos. Ambos lutam, mas só um luta pela vida. Então não se sabe mais quem é quem, tudo está vermelho e cheira sangue e suor. Por fim o demônio tem seu pescoço aberto por uma mordida daquele que já foi anjo e em um suspiro cheio de alívio ele morre.

Transtornado aquele que já foi um anjo vê o corpo do demônio desaparecer lentamente. Ele sente o gosto de sangue e desespera-se ao percebe-se.

Estava vermelho, tingido pelo sangue, pela raiva e pelo combate. Suas asas quebradas doíam uma dor que destruíra a capacidade de pensar, o corpo deformado com cortes, cicatrizes, machucados e sangue; tanto sangue que o cheiro ferroso impregnava o ar. Ele sabia o que fizera, ele matara, ele era um homicida e sabia disso, e saber disso o levara a loucura, quebrara sua alma de maneira que se via a loucura em seus olhos, aquela loucura que se vê nos olhos onde a sanidade jamais voltará. Teve vergonha da sua nudez exposta e das vestes sujas e rasgadas e dos dentes quebrados no combate. Então com toda a força de seus pulmões bradou em ódio que ele não desejara aquilo, que planejava apenas levar o demônio cativo, que jamais previra aquele combate tão fatal. Nunca se preparara para ele. Gritava perguntando o porque daquilo, o porquê da sua pele se tingir de vermelho se a maior parte daquele sangue era seu...

Então ao longe uma luz branca surge no horizonte, linda e magnífica...

E era assim, desde que eu lembro era assim. Havia um demônio, não era sempre o mesmo, mas sempre havia um. Havia sempre um demônio, como não haveria?

O anjo branco e o demônio vermelhoWhere stories live. Discover now